Os sons fluviais da ocupação Cildo Meireles

A obra-instalação de Cildo Meireles rio oir, montada no Itaú Cultural, leva o expectador a um mergulho ao mesmo tempo lúdico e crítico nas águas que sustentam a vida no planeta, mas que também correm sério risco de extinção com os constantes abusos e descasos ambientais.

O projeto foi concebido pelo artista em 1976, com o objetivo de gravar um disco em vinil com sons de água de um lado, e gargalhadas do outro. Em sua versão atual, a obra ocupa duas salas, interligadas por uma janela, em que as dimensões sonoras dialogam como imagens diante do espelho, contrapondo o frenesi do riso, momento do gesto para o exterior do corpo, expansivo, ao fluxo avassalador e ininterrupto do rio, voltado para o interior, para a subjetividade e o inconsciente.
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Por isso a sala dos sons líquidos é escura, sombria, em analogia ao fluxo de consciência ou ao caminho subterrâneo das águas, enquanto a sala do riso é clara, como se o expectador estivesse em um labirinto de espelhos, num estado de alerta.

O espelhamento que já parte do título palindrômico (que pode ser lido da esquerda para a direita ou vice-versa, sem mudar o significado ou sentido) da instalação se desdobra em outras aproximações temáticas contrastantes, como entre o riso que liberta, mas também constrange, ou entre o som que representa a vida, mas que sufoca e parece agonizar no gotejamento de uma torneira.

O temo oir traz a referência do verbo “ouvir”, em castelhano, como a palavra “rio” pode ser lida como a primeira pessoa do singular do verbo “rir”. O riso metafórico do rio carrega uma indagação provocadora sobre a conduta predatória do ser humano com os recursos naturais de que dispõe, chamando a atenção para o conflito cada vez mais acirrado entre a natureza e a urbanização, fenômeno presente nas grandes cidades brasileiras e que tem resultado em tragédias sociais.

Em entrevista recente, Cildo Meireles diz guiar-se pela “dispersão”, como num discurso poético em que os sons das palavras estabelecem os sentidos possíveis, intercambiáveis e renovadores. E é exatamente esse o efeito que os sons de rios, chuvas e do gotejar provocam no imaginário do público, evocando a generosa dispersão das águas, em sua corrente anárquica e vital.

No choque desse rio concreto, real, que nasce de muitas fontes e cruza regiões diversas, com as risadas que beiram a histeria, o artista toca numa ferida dolorosa do presente: o fato de que os rios estão morrendo, na medida em que são ocupados desordenadamente desde suas nascentes.

Os sons dos rios foram colhidos pelo artista na Estação Ecológica Águas Emendadas (ESEC-AE), em Foz do Iguaçu (PR), e nos rios São Francisco (AL/SE) e Araguari (AP), compondo uma topografia simbólica representativa da riqueza de recursos naturais brasileiros e da ameaça de sua crescente deterioração. Parece que ao chegar às cidades, os rios se transformam em sonora gargalhada, ecoando o poderoso som da pororoca, que deveria ser como um poema épico da natureza.

Com a instalação rio oir, Cildo Meireles evoca também o famoso fragmento de Heráclito, filósofo pré-socrático, segundo o qual “não se atravessa duas vezes o mesmo rio”, propondo que devemos ouvir as sonoridades ancestrais dos rios para entender sua beleza.


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