Há muito Raduan Nassar abandonou a literatura pela agricultura, não sem antes deixar duas obras-primas: Lavoura Arcaica (1975) e Um Copo de Cólera (1978), ambas com elogiadas versões cinematográficas. Por esses livros breves, mas de estilo único e alta voltagem psicológica, recebeu o maior prêmio para autores de língua portuguesa no mundo, o Camões.
A cerimônia de entrega nessa manhã, no Museu Lasar Segall, em São Paulo, não foi, porém, um evento de mera cordialidade, mas um evento político. O que reflete a coerência do escritor.
Em seu discurso, reproduzido abaixo, Nassar acusa abertamente o golpe dado pelo governo em exercício com o afastamento da presidenta Dilma Roussef, critica a atuação de Alexandre de Moraes na repressão às manifestações democráticas em São Paulo e sua nomeação para o STF, e, entre outras coisas, aponta a hipocrisia com que foi garantido o foro privilegiado a Moreira Franco.
Sua fala foi muito aplaudida e acompanhada por gritos de “Fora Temer”. Entre os presentes estavam os escritores Milton Hatoum e Estevão Azevedo, a filósofa Marilena Chauí, o ex-chanceler Celso Amorim e o jornalista Mino Carta, além de Luiz Schwarcz, presidente da Companhia das Letras, editora que publica os livros de Nassar, e sua esposa, a antropóloga Lília Moritz Schwarcz.
O ministro da Cultura Roberto Freire defendeu o governo sob vaias. Aos brados, disse que “estamos vivendo um momento democrático, muito diferente do período de ditadura” e que “o prêmio é dado pelo governo democrático brasileiro e não foi rejeitado”. (Na verdade o prêmio é dado pelo governo de Portugal, ali representado por seu embaixador, juntamente com o brasileiro. Além disso, Nassar aceitou o prêmio em maio de 2016, quando Dilma Rousseff não estava afastada definitivamente da presidência)
O escritor Milton Hatoum comentou o ocorrido para a Brasileiros: “Eu acho que foi uma atitude desrespeitosa do ministro, ele podia até discordar do Raduan, mas não era o momento para revidar. Rebater o discurso do premiado no meio da premiação é uma grosseria. É uma vergonha para um homem que foi do partido comunista, como o Roberto Freire, fazer parte deste governo”.
O autor de Dois Irmãos vê o atual governo contaminado pelo autoritarismo e pela corrupção: “Chamar esse governo de democrático é uma piada sinistra”, disse. E acrescentou: “Fora tudo isso, o mais importante é ler Lavoura Arcaica! Ler os contos de Menina a Caminho e Outros Textos e Um Copo de Cólera. É isso o que vai ficar na literatura brasileira. É isso o que me comove.”
Em março do ano passado, Raduan esteve, com outros artistas, ao lado de Dilma para manifestar seu apoio à presidenta. Em 2010, anunciou a doação de uma fazenda de 643 hectares em Buri, onde mora, para a Universidade de São Carlos (UFSCar). A fazenda Lagoa do Sino tornou-se sede do 4° campus da UFSCar.
Desde o início de 2014, oferece três cursos de graduação: Engenharia Agronômica, com ênfase em agricultura familiar; Engenharia Ambiental, com foco em sustentabilidade, e Engenharia de Alimentos, focado em segurança alimentar. Uma de suas maiores preocupações com o governo atual, é justamente o desmantelamento de ações como essa.
A seguir, a íntegra de seu discurso.
Excelentíssimo Senhor Embaixador de Portugal, Dr. Jorge Cabral.
Senhor Dr. Roberto Freire, Ministro da Cultura do governo em exercício.
Senhora Helena Severo, Presidente da Fundação Biblioteca Nacional.
Professor Jorge Schwartz, Diretor do Museu Lasar Segall.
Saudações a todos os convidados.
Tive dificuldade para entender o Prêmio Camões, ainda que concedido pelo voto unânime do júri. De todo modo, uma honraria a um brasileiro ter sido contemplado no berço de nossa língua.
Estive em Portugal em 1976, fascinado pelo país, resplandecente desde a Revolução dos Cravos no ano anterior. Além de amigos portugueses, fui sempre carinhosamente acolhido pela imprensa, escritores e meios acadêmicos lusitanos.
Portanto, Sr.Embaixador, muito obrigado a Portugal.
Infelizmente, nada é tão azul no nosso Brasil.
Vivemos tempos sombrios, muito sombrios: invasão na sede do Partido dos Trabalhadores em São Paulo; invasão na Escola Nacional Florestan Fernandes; invasão nas escolas de ensino médio em muitos estados; a prisão de Guilherme Boulos, membro da Coordenação do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto; violência contra a oposição democrática ao manifestar-se na rua. Episódios todos perpetrados por Alexandre de Moraes.
Com curriculum mais amplo de truculência, Moraes propiciou também, por omissão, as tragédias nos presídios de Manaus e Roraima. Prima inclusive por uma incontinência verbal assustadora, de um partidarismo exacerbado, há vídeo, atestando a virulência da sua fala. E é esta figura exótica a indicada agora para o Supremo Tribunal Federal.
Os fatos mencionados configuram por extensão todo um governo repressor: contra o trabalhador, contra aposentadorias criteriosas, contra universidades federais de ensino gratuito, contra a diplomacia ativa e altiva de Celso Amorim. Governo atrelado por sinal ao neoliberalismo com sua escandalosa concentração da riqueza, o que vem desgraçando os pobres do mundo inteiro.
Mesmo de exceção, o governo que está aí foi posto, e continua amparado pelo Ministério Público e, de resto, pelo Supremo Tribunal Federal.
Prova da sustentação do governo em exercício aconteceu há três dias, quando o ministro Celso de Mello, com suas intervenções enfadonhas, acolheu o pleito de Moreira Franco. Citado 34 vezes numa única delação, o ministro Celso de Mello garantiu, com foro privilegiado, a blindagem ao alcunhado “Angorá”. E acrescentou um elogio superlativo a um de seus pares, o ministro Gilmar Mendes, por ter barrado Lula para a Casa Civil, no governo Dilma. Dois pesos e duas medidas
É esse o Supremo que temos, ressalvadas poucas exceções. Coerente com seu passado à época do regime militar, o mesmo Supremo propiciou a reversão da nossa democracia: não impediu que Eduardo Cunha, então presidente da Câmara dos Deputados e réu na Corte, instaurasse o processo de impeachment de Dilma Rousseff. Íntegra, eleita pelo voto popular, Dilma foi afastada definitivamente no Senado.
O golpe estava consumado!
Não há como ficar calado.
Obrigado
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