Na natureza viva

Manhã de sábado no Rio. A expectativa de sol é confirmada ao pousarmos no Santos Dumont e seguirmos para Santa Teresa, a caminho do ateliê de José Bechara. Instalado em uma das ruas de paralelepípedo que avançam a topografia íngreme do bairro, o reduto criativo de Bechara é um casarão do final do século XIX, com uma vista estonteante. Na varanda do antigo convento surgem no horizonte o mar, a Baía de Guanabara e o Pão de Açúcar, paisagem perseguida por Bechara em instantes de confronto de suas inquietações: “Não sou uma pessoa apaziguada, mas tento ser, e observar essa paisagem me acalma”. Notório por suas conversões de lonas usadas de caminhão e peles de animais mortos em suportes para a produção de pinturas, e também por suas instigantes esculturas que nascem de dezenas de peças de mobiliário, Bechara tem demandas externas frequentes para obter esses materiais, mas atribui ao ateliê um papel determinante:

“Venho para cá todos os dias, mas nem sempre para executar trabalhos. Às vezes, sento em um canto qualquer, tomo um café e fico refletindo por horas. Minha pintura exige esse depósito de coisas insolúveis. Guardo aqui as minhas ideias e, a cada vez que abro a porta do ateliê, elas parecem me desafiar”.

Entre telas, estruturas geométricas de aço que transforma em esculturas, e lonas que decantam em um composto de elementos oxidantes, Bechara revela que quando criou a escultura A Casa para o Faxinal das Artes – residência de 100 artistas brasileiros, idealizada por Agnaldo Farias em Curitiba, em 2002 – enfrentou 12 dias de colapso. Não conseguia produzir e concluiu que faltavam ali os estímulos que o tornaram dependente do ateliê. Achava tudo asséptico demais e até mesmo a grama bem aparada, visível da janela da casa – que, no décimo terceiro dia, decidiu entupir de móveis – o incomodava. A saída revelou novas possibilidades para sua produção escultural e esses desafios constantes funcionam como um moto-perpétuo para ele: “Estou sempre a cinco, 10 metros do abismo. Produzo um quadro e comemoro, mas, no dia seguinte, olho para ele e concluo ‘como é que pude pensar que isso é bom?!’. Quando celebro uma nova produção, o abismo foi parar a 1 km de distância, sou ‘o artista’. Quando volto ao ateliê e concluo que aquilo está muito ruim, o abismo chega a um palmo”.

Aos pés do Corcovado, no histórico bairro do Cosme Velho, que outrora abrigou Machado de Assis, Manuel Bandeira, Euclides da Cunha e Cecília Meireles, Elizabeth Jobim escolheu seu reduto. A antiga casa de pé-direito alto e um aprazível jardim, habitado por duas tartarugas, são um convite à introspecção. O silêncio rompido por bandos de pássaros, migrando de árvore em árvore, sugere estarmos em uma pequena mata e Beth parece impregnada desse aparente deslocamento espacial. Seus depoimentos são pausados, sua voz surge tímida, e o silêncio que vem nos pequenos intervalos em que estrutura suas observações parecem dizer muito sobre ela. Quando recorda o primeiro ateliê, dividido com o amigo José Bechara, Beth enfatiza sua postura introspectiva:

“Durante algum tempo mantive um ateliê em minha própria casa, mas, no final dos anos 1990, comecei a fazer trabalhos maiores e aluguei um galpão com o Bechara, em São Cristóvão. Um espaço gigantesco, industrial e quente, que não permitia muitos momentos de introspecção, e para mim é fundamental espairecer, refletir. Em 2003 encontrei esse espaço, que tem a funcionalidade de um ótimo ateliê, mas ao mesmo tempo tem essa coisa de ser uma casinha”.

Um dos principais nomes a despontar na chamada Geração 80, a primogênita do maestro Tom Jobim vem, desde o final dos anos 1970, produzindo uma obra instigante, fortemente marcada pelo rigor de formas geométricas que nascem da observação de pedras que coleta nas ruas e da obsessão pelo azul. Uma trajetória que teve início com a paixão pelo expressionismo de Goeldi, mas que também revela elementos musicais, como defendem alguns críticos e curadores, e ela mesma concorda: “Adoro música, mas logo vi que não era a minha. Embora estivesse sempre rodeada de música e admirasse muito a intensa ligação de meu pai com o trabalho, desde cedo tive interesse por artes plásticas, não tinha em ninguém da família essa referência, mas fui muito privilegiada em minha formação. Acho que meus trabalhos maiores, que ocupam grandes espaços expositivos têm, sim, uma relação com a música. É preciso percorrê-los, eles são muito gráficos e envolvem ritmo. As linhas e massas de cores convergem livremente no tempo, algo que também remete à liberdade de improviso da música”.

Aos 64 anos, isolado no pequeno bairro de Araras, na região serrana de Petrópolis, o fotógrafo, pintor, cineasta e artista multimídia Miguel Rio Branco passa os dias a contemplar o cenário idílico que o cerca, a ouvir música, e a provocar estímulos na filha Clara, de 16 anos, que vive com ele em meio a dezenas de ampliações fotográficas, pinturas, antiguidades e instrumentos musicais. O ateliê, que desde 2006 tornou-se o lar de Miguel, ainda acolhe galos, galinhas, um casal de dachshund que atende pela alcunha de Café e Cacau, e uma basset chamada Capuccino. Chegamos lá na manhã de um domingo nublado que reduziu o belo trajeto de subida de serra a uma frustrante visão contínua de nuvens e rajadas de chuva, e Miguel nos recebe no portão, escoltado pelos três cães. Cansado da rotina das grandes cidades, o fotógrafo – célebre pela profusão de cores em suas obras – encontrou refúgio e serenidade em meio ao bucólico vale de um verde predominante, que culmina na gigante Maria Comprida, montanha rochosa de quase dois mil metros de altura que, reza a lenda, era habitada, em seu cume, por sacis-pererês e mulas-sem-cabeça.

Em um hiato produtivo motivado pela construção de uma reserva técnica – estruturada em ferro e vidro para a contemplação das belezas naturais do entorno -, Miguel nos conduz ao jardim para mostrar o labirinto que, desde 2008, tem criado ali. Composto de dezenas de placas de granito e mármore, verticalmente inseridas na paisagem, o “labirinto” de pedras aguça a sensação de que estamos mesmo encurralados. Entre comentários ácidos que passam pela mitificação hierárquica da agência Magnum, a inépcia dos laboratórios fotográficos, e a revelação de que suspeita ter esgotado suas possibilidades com a fotografia, Miguel reitera uma constante sensação de deslocamento:

“Uma das grandes proteções que, a meu ver, ainda existe, é ficar fora das cidades e voltar-se para a natureza. É por isso que escolhi viver aqui. Esse lugar serve muito para tentar me acalmar”

Enquanto coa um café no subsolo da casa repleta de estruturas de madeira e vidro, Miguel defende que sempre esteve à margem de convenções: “Quando estudei na Escola Superior de Desenho Industrial – Esdi, em 1968, interromperam as aulas para discutir a possibilidade de refazer o currículo e torná-lo mais adequado à realidade brasileira. Todo o projeto de design baseado nas experiências da Bauhaus dançaria! Era contra isso e, de certa forma, sou marginal na essência. Uma pessoa que trabalha com fotografia, pintura, desenho, cinema, é também um marginal, pois o próprio sistema, o tempo todo, tenta definir você como uma coisa só”. Diferentemente de suas fotografias, pinturas, filmes e instalações, que estimulam amplas subjetividades poéticas, Miguel é direto. Dispensa meias palavras.


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