Na seção de classificados em um jornal carioca, entre ofertas de carros e imóveis, um anúncio publicado em 2016 se distingue dos demais. Com a frase “ofereço companhia”, uma mulher disponibiliza tempo para quem precise de “apoio moral, ajuda em burocracias, escuta de crises”. Isso tudo sem cobrar nada em troca.
O anúncio faz parte do projeto Ofereço Companhia, que a artista carioca Anna Costa e Silva apresenta na galeria Superfície, em São Paulo. Interessada na arte do encontro, Anna se reuniu com 33 pessoas para ajudar em tarefas improváveis: de organizar arquivos de computador a falar sobre o amor.
A exposição, que tem curadoria de Bernardo Mosqueira, é composta pelos registros desses encontros. Com tom minimalista, em uma pequena sala acolhedora, são dispostos um vídeo, fotos, uma agenda, dois livros de artista e 40 monóculos que trazem frases de diálogos que resultaram da experiência.
Formada em Cinema, Anna costuma explorar as conexões entre o teatro e as artes visuais. Ela conta que, durante os 21 dias em que se dedicou ao projeto, não fazia ideia do que iria acontecer. “Fui sem ter plano prévio. Queria saber como cada um levava sua vida, que mundos são esses que existem e que eu jamais acessaria se não fosse por esse projeto”, afirma.
No período do experimento, a artista também cuidou de crianças, passeou com cachorros e, claro, conversou sobre a vida das pessoas. O amor, por exemplo, foi um dos temas que mais apareceram nos diálogos. “Acho que todo mundo quer falar sobre o amor, né?”, indaga.
Em um dos casos, Anna ajudou uma mulher que havia terminado um relacionamento a organizar toda a casa e retirar os pertences do ex-namorado. “Em muitos desses encontros havia um jogo entre o prático e o existencial”, afirma.
Ao se lembrar das conversas, ela cita o caso de uma menina gaúcha que a impressionou muito. Logo nos primeiros contatos, a moça contou que havia sido estuprada pelo próprio pai. “Enquanto a ouvia falar, eu só conseguia pensar: Meu Deus, isso é muito sério, não tenho repertório para lidar com esse tipo de coisa”, afirma.
Outro caso que a artista se recorda é o de um homem que quis conversar sobre um projeto específico. Tratava-se de uma carta que ele havia escrito para o ex-namorado, usando seu próprio sangue como tinta. “Ele desenvolveu um mecanismo para tirar o sangue e com isso redigiu a carta que, até hoje, nunca entregou”, conta Anna.
Nesse processo, a artista também passou por momentos de temor. Logo no primeiro dia, uma pessoa, que ela classifica como psicopata, mandou mensagens convidando-a para ir ao motel. Um homem também tentou agarrá-la durante uma conversa.
“Teve um dia que encontrei um rapaz às cinco da manhã e comecei a pensar que aquilo poderia ser perigoso, mas no final correu tudo bem. Por outro lado, eu também podia ser vista como uma ameaça. Afinal, eu era uma total desconhecida. Acho que o fato de ter me exposto foi também o que garantiu a proximidade com as pessoas”, afirma.
O intuito da artista era criar brechas no cotidiano, propondo novas formas de convivência. No início do projeto, Anna filmou uma ligação que fez para o setor de classificados do jornal O Globo. No vídeo, o público pode ver a artista explicando o anúncio que queria fazer. Sem entender o que a artista pretende, a atendente pergunta: “Mas, moça, qual é a finalidade?”. Ela responde que não há objetivo específico. Impaciente, a funcionária afirma que não é possível fazer esse tipo de anúncio.
O comportamento da atendente surpreendeu a artista. “A reação dela foi uma metáfora de todo um sistema de crenças e valores a que estamos acostumados. Foi uma resposta agressiva, como se oferecer companhia fosse algo ofensivo, do qual devêssemos desconfiar”, comenta.
O vídeo é uma das obras mais diretas da mostra, servindo para contextualizar o processo. O curador comenta os dilemas de formalizar os trabalhos da artista, que são em grande parte imateriais: “A Anna tem toda uma produção baseada principalmente nas relações. O nosso maior desafio foi o de transformar as experiências em objetos”.
Outra alternativa adotada foi a exibição de 40 monóculos com frases dos diálogos que a artista manteve com as pessoas. Para Anna, essa solução manteve o caráter íntimo das conversas: “Eu não queria mostrar as histórias (de forma que ficassem) totalmente expostas. Dessa maneira (com os monóculos) apenas uma pessoa de cada vez pode olhar para elas”.
Muito mais do que o resultado final, a artista se interessa mesmo pelos encontros, que descreve como arrebatadores. “Num certo nível, o trabalho existiu para as 33 pessoas e, de outra forma, como vestígio dessas experiências”, afirma.
Serviço – Ofereço Companhia
Até 11 de março
Galeria Superfície
Rua Oscar Freire, 240, São Paulo, SP
11 3062-3576
Deixe um comentário