Gentileza carioca

Comecei a fazer teatro com 15 anos e participei de uma montagem de O Rei e o Mendigo, do Brecht. Meu personagem começava como rei e ia se transformando em mendigo, mas iniciei a peça falando a última frase. Comecei a peça pelo fim, veio aquela vaia e um certo mal-estar no palco. Quatro ou cinco anos depois é que percebi que esse foi meu primeiro trabalho de arte.Comecei como ator, mas depois decidi estudar com o pintor geométrico Luciano Maurício, e passei uns dois anos com ele em Minas Gerais. Me formei no Parque Lage e comecei a fazer pinturas, esculturas e instalações. Passei a chamar outros artistas para realizar algumas obras comigo e fiz muitos trabalhos com o Pedro Agilson. Isso foi em 2003, em um momento que coincidiu com a abertura da galeria. A Gentil Carioca nasceu no dia 6 de setembro de 2003 e costumo brincar que já nascemos independentes. No começo estávamos eu, Franklin Cassaro, o Ernesto Neto e a Laura Lima. Começamos a galeria nós quatro, mas o Franklin saiu meses depois. Esse é um espaço que tem como diferencial o fato de ser dirigido por três artistas, o olhar do artista está por trás de todas as ações e, apesar de sermos uma galeria comercial, temos vários projetos. O ABRE ALAS é um dos que considero mais importantes. Uma exposição que a gente faz, desde o fim de 2003, próxima ao carnaval – daí o nome ABRE ALAS -, que é uma vitrine para os novos artistas. Ao longo do nosso primeiro ano, recebemos mais de 200 portfólios e vimos que tinhamos alguns tesouros em mãos. Vamos agora para a sétima edição e outros projetos foram nascendo dessa interação com os artistas e o público. Em 2005, fizemos a exposição Educação, olha!, muito simbólica para a gente. Convidamos mais de 60 artistas para trazerem desenhos e, a partir deles, pensarmos na questão do desenho como um primeiro alfabeto do artista, uma forma de aproximar a exposição da questão da educação. Logo após, nasceram outros dois projetos. Um deles é o Parede Gentil, uma ocupação de nossa fachada lateral de 10m. A cada quatro meses, convidamos um artista para tomar o espaço e um colecionador para apoiar o projeto, pensando na relação entre a obra de arte e a rua, mas, ao mesmo tempo, enfatizando a importância do colecionismo como uma forma de educação. Fazemos também o Camisa Educação, que já está em sua quadragésima edição. A cada nova abertura de exposição, o artista é convidado a fazer uma camisa que tenha a palavra “educação” escrita.

Um grande caminho para irradiarmos cultura é começar pela vizinhança e percebo que as pessoas em volta da galeria, o barbeiro, o dono do bar, o dono da loja de eletrônicos, estão sempre querendo saber quando será feita a próxima parede, o que será criado, opinam dizendo se gostaram ou não. O Guga Ferraz fez um trabalho chamado Cidade Dormitório, uma escultura feita de oito camas, e uma escada lateral para que as pessoas subissem e dormissem nelas. Nos quatro meses em que a obra ficou exposta, sem-tetos e bêbados começaram a ocupar aquilo. Tinha um deles que dizia que o seu apartamento era no último andar, subia com o cachorro e criava todo um universo próprio.

Essa casa é de 1923, foi toda restaurada, e acho simbólico estarmos em pleno Saara, um dos maiores comércios populares do mundo e uma região que nasceu no século passado, basicamente construída por imigrantes judeus e árabes, que, contrariamente ao que acontece no mundo, têm aqui uma relação de proximidade e respeito. A Gentil nasceu em um momento em que o mercado de arte no Rio estava muito pequeno e, ao dar espaço aos novos artistas, acho que trouxemos um pouco de risco para o mercado. Logo começamos a fazer um trabalho internacional. O primeiro deles foi a participação na New Art Dealers Alliance (NADA), em Miami, em 2005, que foi muito importante para nós, porque os principais colecionadores começaram a se aproximar, conhecer o programa da galeria e nos dar apoio. Estivemos também na Art Basel, na Frieze e na Miami Art Basel. Recentemente, encontrei dois importantes diretores de museus europeus e eles partiram lamentando não poder ficar um tempo maior no Brasil, pois achavam que ainda havia muito a ser explorado e compreendido de nossa cultura. Lógico que na Europa existem coisas muito importantes acontecendo, mas existe aqui toda uma “selva” cultural impenetrada e incompreendida que é extremamente estimulante para eles. Ao longo desses oito anos, também ampliamos nossas ações culturais na cidade. Fizemos no último verão um projeto chamado Alalaô, com três intervenções na praia do Arpoador. O Guga Ferraz levantou 400 pipas no céu no Dia de São Sebastião. No Dia de Iemanjá, Ronald Duarte veio de barco da Urca ao Arpoador, com 20 artistas vestidos de branco. Ancorados em frente à praia, eles formaram um círculo e ao mesmo tempo acionaram 20 extintores de incêndio. A fumaça virou uma onda branca sobre o mar, quase como um corpo de Iemanjá. Na sexta-feira anterior ao carnaval, Bob N colocou três palmeiras na praia e as interligou com serpentinas coloridas. A boa nova é que neste mês abriremos um novo espaço que vai se chamar A Gentil Carioca Lá, na Lagoa Rodrigo de Freitas. Será uma espécie de instituto cultural, com uma pequena biblioteca, um espaço para debates e exposições. Um espaço pequeno, mas muito simbólico pois ficará em cima do Lagoa, um bar histórico da cidade. Mais uma vez, estamos falando da importância da história como base para conhecermos um pouco quem somos e, assim, seguirmos em frente tentando algo transformador.


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