“Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça” ou “Ave Maria cheia de graça” parecem, então, não ser mais uma unanimidade. Se você, leitor, se choca com a primeira frase ou com a última, se se identifica com saias mais longas ou mais curtas, é uma vasta discussão. De qualquer forma, é inegável que placas tectônicas conceituais antes sólidas hoje se fissuram. Dissolvem-se identidades: o feminino parece estar em ebulição. Nem mãe nem mulher continuam sendo o que imaginávamos ser.
Partindo de uma história
Uma mulher vive com um homem e com ele tem um filho. Esse homem é o seu parceiro estável. Ela tem um outro homem, seu amante, Dan. Esse é músico. O parceiro descobre essa teia desejante complexa – como, aliás, quase todas. Fica enlouquecido e mata o amante (tema para outro texto, sobre a psique masculina e sua rivalidade constitucional). O curioso da narrativa é que um juiz condena: ela é culpada e deve ir presa. Repetindo: ela é culpada. Algo nela incita o namorado ao crime. Ela foi presa.
Pergunta: em que século estamos?
Resposta: Santos, XXI.
Santos? Sim, todos os santos se chocam com essa mulher. Pois ela não é bela, recatada e do lar. Ela é uma mulher desejante e astuta. E, sim, cheia de graça. Talvez graça demais. Provavelmente mentia para sustentar sua teia, como, aliás, todos nós. Mentimos para os outros e para nós mesmos para sustentar nossos desejos e também nossas neuroses.
Outra pergunta: e se fosse um homem o pivô da história, estaríamos na mesma construção de sentido? Ou seja, prenderíamos o homem por exercer seu poder de sedução sobre duas mulheres e “incitar um sujeito feminino ao crime”?
Conclusão: damos muito poder às mulheres. Elas podem levar um homem à loucura. E ao crime. A um assassinato. Sim, uma mulher tem muito poder.
Afinal, é ela que incita o desejo do homem. É ela que, permitindo que partes de seu corpo sejam expostas, faz o homem desejá-la a tal ponto que deve estuprá-la.
Não está claro?
Pois é essa a narrativa que escorre de nossas bocas.
E que, ao fim e ao cabo, talvez não seja completamente destituída de sentido. Enfim, em parte a mulher tem sim algo a ver com o desejo do homem. Não é incrível essa constatação?
A mulher é responsável então? De certa forma, ela responde por algo estrutural do masculino que é seu desejo. Sim, seu órgão não lhe pertence. Ele de alguma forma é território “transicional”, como o clássico objeto transicional winnicotiano: o desejo masculino se revela na carne do homem, mas é incitado a partir do corpo e da postura da mulher. Aqui encontramos a chave do imbróglio que funda nosso desacordo entre os sexos. O pau do homem só funciona à condição de ter um estímulo para além de si. Esse além é causa e culpa de seu movimento.
Nada do que esperávamos encontrar
Como a mulher sustenta essa posição de ser de desejo? Ou de objeto de desejo?
Muitas mulheres hoje estão mais preocupadas com sua inserção no mercado e o desempenho de sua persona profissional do que em se fazer um ser cheio de graça. Na melhor das hipóteses, usa essa graça como instrumento para alcançar um lugar de proeminência e reconhecimento – seja no mercado de trabalho, seja no mercado sexual e de casamentos. Afinal, a graça talvez ainda seja uma das armas em que as mulheres se saem relativamente bem – com a devida formatação complementar do imaginário masculino, que se deixa por ela seduzir. A mulher frágil e meiga não deixa de ser parte de uma ficção, talvez mais desejo imaginário (sobretudo masculino) que realidade.
A própria conexão que a Internet proporciona tem levantado bandeiras e alavancado uma nova onda de consciência feminista – que denuncia, por exemplo, micromachismos cotidianos, a prática naturalizada do assédio, o segredo dos amigos e familiares secretos, enfim, mulheres em fúria.
Cada vez mais mulheres estão engajadas em ter o domínio de técnicas de manejo e negociação, seja em reuniões de business, seja em redes tipo Tinder. Deslocamento identitário que até a novela das 8, sempre na retaguarda dos grandes movimentos sociais, já detectou e ao qual acaba de dedicar um fio de sua trama. Aliás, num dos percursos mais mágicos de roteiro: de passiva, esvaziada e impotente amélia que-apanha-do-marido à cinderela que-recupera-a-autoestima-pelo-amor e, daí, à independente empreendedora.
Não, nem amélia, nem doce, nem cheia de graça. O negócio agora é cheia de gana, de resiliência, de tesão. Com um homem, com dois, com mil. Não somente bela, jovem e graciosa. Não somente bela, recatada e do lar. Talvez o melhor adjetivo a qualificar o feminino hoje, embora amplo, seja “interessante”. Ou, como nos diz o surpreendente novo calendário Pirelli, “inspiring”. Lentamente, os homens serão libertados de seu desejo tão seriado e simplista por carnes jovens; assim como as mulheres poderão se fazer desejáveis a partir de toda a complexidade de suas múltiplas camadas humanas. Da superficialização imagética que coloniza o corpo da mulher a uma densidade conceitual, e coreográfica. Sua pele, seus gestos, sua fala, seu pensamento, suas obras interessam. Inspiram. Eis aí a nova série de mulheres-pirelli, apple, nike, qualquer marca que queira pegar carona nessa transvaloração.
Porque, afinal, mulher quer poder existir inteira, quer gozar do seu corpo e do seu ser. E ela descobriu que pode. Irreversível.
E se, no meio desse trajeto desejante, ela vier a ter dois homens e esse ato provocar os efeitos (inesperados, incontroláveis; esperados, incontroláveis) do ciúme, da inveja, do ódio, do esfacelamento da imagem de si e de seu ideal, do confronto com a ideia de virilidade? Tanto pior. Contenha-se e não mate. Afinal, você pode pegar 18 anos de prisão. A mulher que estava no meio da sua fantasia e da sua vida, a mãe do seu filho, cheia de graça e desejo, quis outro e deu para outro. Ela foi presa, mas somente por seis dias.
E o lugar de mãe?
Aqui ousaria dizer que o iceberg está se desmanchando numa velocidade radical desde as primeiras feministas, Beauvoir ou Badinter, e a desconstrução do mito do amor materno. Vejamos algumas rachaduras mais dramáticas.
Primeira. A polêmica que se gerou a partir da ingênua ou ideológica campanha “Desafios da maternidade” que circula nas redes sociais. O “desafio” (de mentirinha, como quase tudo no Facebook) é “aceito” e se postam imagens fetichizadas da vivência materna, assim idealizada. Seguem-se os clichês conhecidos, só love e muitos coraçõezinhos. A reação não se fez esperar. Inúmeros contradepoimentos, sempre com uma mensagem de fundo: para com essa bobajada. A vida é mais complicada que isso.
Mesmo o fenômeno “parar de trabalhar para se dedicar aos filhos” que tem crescido nas classes mais altas parece ser, de fato, um álibi para uma vida mais livre do stress do trabalho. Inclusive o trabalho com os próprios filhos, pois essas mães dedicadas usualmente terceirizam os cuidados maternos e administram o staff para manter a engrenagem doméstica funcionando, entre babás, motorista, cozinheira e professores. Mais tempo livre para se dedicar a si mesmas: afinal, por que o dinheiro não poderia alavancar a tranquilidade narcísica que almejamos?
Enfim, o debate busca levantar alguns véus. A maternidade é difícil, cansativa e plena de ambiguidade. Por vezes, aliás, triste, desesperada, infeliz. Exagero?
“Logo depois do nascimento do bebê, eu disse: aconteceu uma catástrofe. Catástrofe. Vi que não era para mim. É o pesadelo da minha vida”. Outra mãe: “Logo entendi que a relação do casal nunca mais seria a mesma e que a partir desse dia eu teria que seguir com um outro ser humano do meu lado. Terrível”. Ou: “Tenho a contínua sensação de estar vivendo uma vida que não é a minha. Não tem um dia em que me levante e não deseje estar em outro lugar”.
Esses são depoimentos colhidos em uma original pesquisa – “Regretting Motherhood” – realizada talvez no lugar mais inesperado. A autora é Orna Donath, da Universidade de Ben Gurion, em Israel. Estamos tocando no coração de um grande tabu. Mas o fato é que algo está sendo explicitado: existe a possibilidade de se arrepender de ser mãe.
O que não deixa de estar em relação com o crescente (e também digno de nota e reflexão) movimento Child Free. No Child. Ou seja, uma pequena parcela da população humana ousa dizer e praticar o que talvez uma parte de nós jamais imaginaria sentir ou pensar: quero estar livre de filho. Ponto nevrálgico a ser melhor desenvolvido em outra ocasião.
Por ora, o que se sabe é que é bastante difícil conviver com outro ser humano, sobretudo numa experiência íntima e corpórea. Agora, o desafio mesmo é criar e mergulhar no que se é – filha, mãe, mulher – para além do que o outro possa achar. Mesmo que esse outro seja o mundo inteiro.
Isso significa que, por mais que por vezes a história nos revela retrocessos absolutos, o que vivemos não deixa de ser transformação radical de um paradigma. Mulheres, desejemos. Livremente.
Não é mais nem menos do que isso o x da questão.
*Maria Homem é psicanalista, pesquisadora do Núcleo Diversitas FFLCH/USP e professora nas áreas de Psicanálise, Cinema, Literatura e Comunicação da Faap
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