Caro leitor, antes de iniciar nossa conversa sobre as causas, características e possíveis efeitos dos novos episódios da crise internacional, peço-lhe que deixe de lado – ainda que momentaneamente, pois a decisão será sua ao final da leitura – os preconceitos que sempre acompanham matérias sobre turbulências nos mercados financeiros. Apesar de o aprofundamento da crise desde 2008 ter evidenciado uma enorme dificuldade de cooperação internacional – entre instituições financeiras, organismos multilaterais e governos nacionais -, antes de aceitar como fato que todo banqueiro é “do mal” e que os Estados Unidos e países europeus exploram o resto do mundo, a quem impõem parte substantiva da conta a pagar no pós-crise, é preciso compreender melhor os elementos que impulsionaram a volta do temor aos mercados mundiais. Essa é a proposta despretensiosa deste artigo.
A respeitada revista semanal alemã Der Spiegel afirmou, nos primeiros dias de agosto, que “O mundo não tem a liderança política necessária para acabar com a crise“. É, sem dúvida, uma afirmação forte, mas ela parece resumir bem a situação presente. Talvez coubesse algo ainda mais forte que ilustrasse os reais danos que os recentes desenvolvimentos políticos vêm impondo ao mundo.
Exatamente três anos após o aprofundamento da crise, observamos os sinais de que um segundo mergulho é eminente, com vários elementos semelhantes. Sem recapitular os detalhes da crise desde 2008, já discutidos em várias ocasiões aqui (edições 15, 17, 18 e 33), é fundamental olhar para o que está sobre a mesa no momento atual. Os Estados Unidos e a Europa estão superendividados.
Como resposta à crise, esses países aumentaram muito seus gastos, em várias frentes, por muito tempo. Os efeitos dessas políticas de estímulo ficaram aquém do esperado, as economias dos países mais desenvolvidos não se recuperaram a ponto de voltar ao nível pré-crise. As instituições financeiras ainda estão frágeis e a “vontade” do mercado de continuar financiando esses desequilíbrios não é infinita. O quadro tende a se agravar enquanto uma política de equacionamento sustentável das contas públicas não for posta em prática nos Estados Unidos e na Europa.
Sabemos muito bem que essa crise tem desdobramentos sobre o mundo inteiro. Vejamos como.
O dólar no centro do mundo
Na reconstrução da ordem monetária internacional após a Segunda Guerra Mundial, a opção foi criar um sistema fundamentado no acordo entre os países líderes da economia mundial sobre o regime de flutuação de suas moedas, e que agregasse as novas instituições multilaterais (FMI e Banco Mundial). A constituição desse sistema teve como objetivo restabelecer estruturas e regras, em princípio seguras, para a retomada das transações internacionais. O resultado foi a definição assimétrica do peso das moedas, com a proeminência do dólar americano.
Mesmo depois de os Estados Unidos se desincumbirem oficialmente da função de moeda reserva mundial, no início dos anos 1970, o dólar seguiu sendo o veículo da maior parte das transações econômicas internacionais. Isso traz um benefício enorme para o país que emite a moeda de reserva, uma vez que o mundo todo está disposto a acumular não apenas a moeda, mas também ativos financeiros denominados nela (títulos públicos e privados). Basta os Estados Unidos imprimirem dólares para ter em mãos algo que paga todas as contas. Ademais, se todos querem guardar títulos em dólar, o país pode se dar ao luxo de emiti-los pagando juros mais baixos do que os outros países e financiar, com dinheiro do mundo todo, seus excessos de gasto. A esse processo, o político francês Valéry Giscard d’Estaing, ministro das Finanças de De Gaulle nos anos 1960, chamou de privilégio exorbitante.
O nascimento do euro, em 1999, apareceu como uma possibilidade concreta de desmontar essa hegemonia. De fato, houve alguma redistribuição na importância relativa das moedas que compõem as reservas internacionais dos países. Mas o dólar permanece no centro do sistema, mesmo depois de uma crise de enormes proporções, gestada e complicada no interior de sua própria economia. Ainda não se consolidou nenhuma alternativa capaz de desbancar a moeda norte-americana de sua posição central. Mesmo com as instabilidades presentes, o dólar ainda é considerado um porto seguro.
Alternativas ao dólar – além do euro, a libra esterlina, o iene ou mesmo o franco suíço – não aparecem como sólidas, particularmente porque os mercados para essas moedas não são grandes o suficiente e pela menor importância relativa dessas economias no contexto mundial. Os problemas internos da União Europeia aparecem, agora, como o principal obstáculo para que o euro desempenhe um papel mais importante.
Os custos do salvamento dos países mais ricos e o endividamento
Para fazer frente à recessão que se instaurou após a quebra de instituições financeiras nos Estados Unidos e do outro lado do Atlântico, em 2008, quase todos os governos do mundo lançaram mão de políticas econômicas expansionistas, mais precisamente, aumentaram gastos dos governos, reduziram impostos e afrouxaram a política monetária para estimular a retomada das operações de crédito. O dinheiro público foi usado também para salvar bancos insolventes, ação inevitável para prevenir uma destruição devastadora das estruturas econômicas.
Claro está que todos aqueles gastos deverão ser pagos em algum momento e que as medidas pró-crescimento não têm efeito imediato, de forma que incrementos na arrecadação de impostos não têm sido suficientes para permitir aliviar as contas dos governos. O resultado é que as dívidas públicas cresceram de maneira acentuada por todos os lados, em especial nos Estados Unidos e na Europa.
Downgrade
Na primeira semana de agosto, assistimos todos, como a uma final de campeonato, ao Congresso dos Estados Unidos votarem um aumento para o teto da dívida pública (que passou a casa dos US$ 16 trilhões). Se a resolução não fosse aprovada, a maior economia do mundo seria decretada insolvente.
Poucos dias depois, a agência de classificação de risco Standard & Poor’s rebaixou a nota para a qualidade de crédito do governo federal dos Estados Unidos de AAA para AA+. Obviamente, a decisão tem um significado antes de tudo simbólico, para além dos critérios técnicos. Os papéis considerados nos mercados internacionais como desprovidos de risco perdem parte de sua credibilidade.
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A história toda serviu para mostrar ao mundo a dificuldade estrutural de construir alguma colaboração política ou a impossibilidade de caminhar para qualquer tipo de consenso no que tange às estratégias para enfrentar a crise. Olhando rapidamente, parece que as lentes dos óculos dos políticos só corrigem a miopia até o horizonte da eleição. Mas esses impasses expressam, também, diferenças importantes, entre os dois grandes partidos, na ideologia e na visão de como conduzir a política econômica. Fica a pergunta inevitável: a economia não respondeu satisfatoriamente aos enormes estímulos fiscais e monetários, vale a pena insistir e seguir na mesma direção? O que fazer então?
Uma coisa é certa. O presidente Obama teve dois anos com maioria no Congresso para fazer muita coisa, aumentar impostos de quem paga pouco, direcionar os gastos onde os resultados seriam mais efetivos. Fez pouco. Agora está em posição de refém, como disse recentemente o economista, prêmio Nobel, Paul Krugman.
Imbróglio europeu
No início de 2010, a tragédia em que se converteu a situação fiscal grega veio a público. Apesar dos dois pacotes de ajuda organizados pela União Europeia com suporte do FMI, o problema está longe de ser solucionado. Outros países que integram a zona do euro entraram em pré-colapso: Portugal, Irlanda, Espanha, Itália e, recentemente, as luzes de segurança se acenderam para a França. Mesmo se os recursos destinados pela UE para o salvamento de seus sócios fossem suficientes, isso só resolveria dificuldades imediatas. É certo que a solução vai demandar um esforço de corte de gastos e sacrifícios – estendidos às próximas gerações – enormes. Em suma, o remédio é amargo para os governos nacionais e, qualquer seja a terapia escolhida, a União se vê obrigada a enfrentar tarefas institucionais e políticas muito duras.
Em meio às altas nos termômetros dos mercados financeiros, Angela Merkel e Nicolas Sarkozy, chefes de Estado da Alemanha e da França, se reuniram e anunciaram, em 16 de agosto, uma proposta de acordo que parece refletir as inquietudes alemãs no que concerne à estabilidade. A ideia é que os 17 países membros da zona do euro incluam em suas constituições um dispositivo que garanta o controle sobre o orçamento público. Perante a dificuldade política em avançar ainda mais na direção de uma governança econômica europeia – pela sessão de soberania fiscal ao grupo da moeda única -, uma maior coordenação consentida das políticas orçamentária, fiscal e social seria uma vitória considerável e o caminho para o fim da crise, ainda que com resultados a serem esperados para o futuro um tanto distante.
É certo que os problemas na economia americana só fazem complicar os caminhos de saída da crise europeia. Enquanto os Estados Unidos fazem tudo para que o dólar deprecie – estimulando seu comércio externo -, o euro aprecia, dificultando o crescimento na UE e na Alemanha, sobre quem está recaindo o custo mais alto da crise e das operações de salvamento.
Os emergentes: apreciação cambial e voz ouvida
As grandes economias emergentes se saíram muito melhor durante a crise que os tradicionais países industrializados, como se sabe. Entraram melhor na crise, pois haviam feito reformas importantes e administrado com mais cuidado suas políticas econômicas – como efeitos, também, do sofrimento de crises passadas.
Durante a fase de prosperidade dos anos 2000, a China, ao mesmo tempo que aumentava suas exportações para os EUA, ampliava suas compras de títulos do Tesouro americano e financiava, por meio desse mecanismo, o excesso de consumo por lá. A esse arranjo informal, no qual se pode englobar várias economias emergentes que têm superávits crescentes, tem sido dado o nome de global imbalances, ou desequilíbrios globais.
Veja que esse mecanismo não é novo. Atribui-se ao ex-presidente americano Ronald Reagan, nos anos 1980, a ideia de que o déficit em transações correntes refletia a confiança que o mundo todo tinha na economia americana (comprando títulos da dívida deles).
O fato é que os países emergentes, acumulando superávits em suas contas externas, acumulam também dólares e títulos lastreados naquela moeda. A China é a principal detentora de ativos em dólar, sua moeda não é conversível internacionalmente e seu sistema financeiro é relativamente fechado à presença estrangeira. Mas não é verdade que esteja completamente blindada contra os efeitos da crise, mesmo tendo se tornado o principal parceiro comercial de muitos países. O presidente Hu Jintao esteve na França no final de agosto para discutir os desdobramentos da crise europeia e garantiu a permanência de investimentos por lá. Esse é um sinal inequívoco de que muito mudou.
O Brasil tem, nos últimos tempos, a posição mais confortável e segura que jamais teve perante as turbulências mundiais. Por isso, e pelos próprios movimentos dos mercados, o Brasil é um dos mais atingidos pelo que o ministro Guido Mantega chamou de “guerra cambial”. Não está a salvo das tormentas, porque ninguém está. A forte apreciação do real tem efeitos preocupantes para os produtores nacionais.
No contexto da crise, vêm ganhando destaque fóruns internacionais de discussão em que os países emergentes têm importância cada vez maior, como o G20. No entanto, a despeito de os grandes temas acima mencionados estarem na pauta desses fóruns, as decisões têm sido relativamente pouco efetivas. Nos comunicados oficiais, não raro se designa novas tarefas às antigas instituições como o FMI, cuja capacidade de solução de crises está em questão há décadas, para dizer o mínimo. Isso não diminui a importância do G20 ou de outros agrupamentos, mas demonstra, mais uma vez, que a rota para a reconstrução da “normalidade” no sistema monetário e financeiro internacional não será direta nem curta.
Nova ordem econômica mundial tem sido chamada, mas ainda não disse se vem
Tanto a confusão na política americana para negociar o teto da dívida como as dificuldades para resolver de forma permanente os desequilíbrios na Europa trazem para o mundo – e, particularmente, para os bancos centrais que decidem o quanto acumular de moedas estrangeiras – a angustiante questão sobre um eventual novo equilíbrio estável na ordem monetária internacional. Seria prematuro nesse momento arriscar qualquer esboço de resposta definitiva a isso.
Não é descabido de lógica, porém, pensar em uma paulatina redistribuição de importância entre as moedas, incluindo na cesta de moedas relevantes algumas de grandes economias emergentes. Mas, elevar um país ao status de emissor de moeda de reserva internacional implicaria dois fatos importantes: essa moeda deve ser conversível. Lembremos, porém, que o yuan ou renminbi, “a moeda do povo” como é conhecido na China, não é conversível e que o país ainda não emite títulos de circulação internacional; e, que além do privilégio de se financiar melhor e mais barato internacionalmente, haveria um custo de apreciação da taxa de câmbio. Escolha complicada, não?
Tudo indica que estamos caminhando para uma nova configuração do sistema monetário internacional. O processo é gradual, não deve ser reeditado um arranjo global, com países acordando regras e criando instituições como foi há quase 70 anos. Parece haver pouco empenho para a cooperação em escala mundial. Mas é certo que, mesmo se diminuído, o dólar não vai perder protagonismo, mas talvez o divida com o euro e com moedas dos países emergentes mais fortes, líderes nos arranjos regionais e cada vez mais relevantes na cena global. O Brasil, de Dilma pode estar entre eles.
*Economista, professora do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo.
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