As quatro estações

Foi entre os últimos dias de março e a primeira semana de abril que notei o piano no hall principal da Estação Santana do Metrô, em São Paulo. A princípio, pensei que o local receberia algum tipo de cerimônia, o que explicaria a aparição repentina do instrumento. Digo repentina com convicção, pois sou usuário da linha Azul (Norte-Sul) há décadas. Nunca houve um piano naquele lugar. Mas agora tinha um piano e um banco próximos às escadas rolantes. Não havia placa, aviso, manual de instruções, partitura nem etiqueta do dono.

Poucos dias depois, percebi que o piano estava lá para que os próprios usuários da estação o tocassem, e não tardou para que as pessoas se acostumassem com ele. Hoje, é difícil passar por ali e ver seu banco desocupado. Como usuário diário da linha, no final de maio já havia testemunhado todo tipo de gente sentada ao piano e, para minha surpresa, a maioria dos que se atrevem a dedilhá-lo parece saber como se faz. O acúmulo dessas frequentes surpresas me levou a escrever a seguinte frase em um site de relacionamentos na noite do dia 26 de maio: “Parabéns a quem tomou a iniciativa de disponibilizar um piano aos usuários da estação Santana do metrô. Segunda-feira passava eu por lá aproximadamente às 7 p.m. enquanto um sujeito tocava Highschool Lover, do Air, com muita competência. Ontem, no mesmo horário, uma adolescente parou o trânsito – literalmente – com Bad Romance, de Lady Gaga”.
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Esse foi, até hoje, o mais popular entre os meus posts. Era gente querendo dividir suas experiências e manifestar admiração pela iniciativa. Mas, claro, sempre tem o infeliz que transforma qualquer assunto em debate político. Um único comentário e o circo está armado. Eu disse que não acreditava na participação de órgãos públicos nessa questão. Passei a mão no telefone e liguei para a assessoria de imprensa do Metrô. “Foi um empresário quem doou o piano”, me disseram. Mas não me deram o nome dele, tampouco da empresa. “Parece que ele não gosta de aparecer”, opinaram do outro lado da linha. Contei que gostaria de entrevistá-lo e deixei meu e-mail e telefone (residencial, pois não tenho celular). Depois de cinco dias me ligaram.

O doador é um senhor chamado Matteo Levi, 75 anos, filho de italianos, nascido no Egito, brasileiro por afinidade e paulistano por opção. Levi é dono da distribuidora Europa Filmes e também da empresa de cinema itinerante Cinemagia, que promove cerca de 600 sessões gratuitas de cinema por todo o País. Com dez anos de existência, a Cinemagia gerencia há cerca de oito meses o projeto “Encontros” no Metrô de São Paulo, viabilizando espaços culturais com programação diária gratuita em 18 estações. E, ao contrário dos 3,5 milhões de usuários diários do Metrô de São Paulo, o projeto não está de passagem. Deve permanecer em cartaz pelo menos até outubro de 2020.

No entanto, vale notar que os pianos no metrô não fazem parte desse projeto. E Levi diz que a doação não foi para o Metrô, mas, sim, para seus usuários. “Mas a ideia”, ressalta, “não é minha. Partiu de uma conversa informal com um amigo que trabalha há muito tempo no metrô”.

Na verdade, a ideia não foi nem de Levi nem do amigo dele. A iniciativa foi inspirada no projeto “Play me, I’m yours“, do artista plástico inglês Luke Jerram que, no final de 2008, esteve em São Paulo e espalhou oito pianos em lugares públicos. Atualmente, o britânico já distribuiu mais de 400 pianos em 11 países. Quando o amigo de Levi disse que a ideia poderia ser estendida ao Metrô de São Paulo, quatro instrumentos foram providenciados, que hoje estão nas estações Santana, Sé, Tamanduateí e Largo Treze. “Mas isso é só o começo”, adianta o empresário, que não toca piano. “Não toco nenhum instrumento, é uma frustração que tenho.”

A autoria da ideia pouco importa no final das contas. O interessante é que tem gente boa por aí disposta a disseminar cultura de forma incrivelmente democrática e prática. Muitos dos que passam pelos pianos estão vendo o instrumento pela primeira vez, e a quantidade de pianistas, amadores ou profissionais, que os instrumentos no metrô têm revelado é surpreendente. Pessoas que, não fosse pelos pianos, seriam tão anônimas quanto a maioria de nós. Desconfiados e arredios. Honestamente falando, São Paulo é uma cidade que não incentiva a interação entre estranhos.

Música ao vivo em estações de metrô são novidades mais que bem-vindas no Brasil, mas a prática não é nova. Na Europa é muito difícil pegar um metrô no centro das principais capitais sem cruzar o caminho de algum músico. No verão, torna-se impossível evitá-los. Na Inglaterra de Luke Jerram, por exemplo, os buskers (palavra usada para definir todo tipo de artista de rua) que se apresentam no subterrâneo de Londres passam antes por rigoroso processo de seleção.

Já em São Paulo, é só chegar, sentar e tocar. O piano está disponível para todos. Soma-se a isso o fato de que as pessoas que os tocam não estão ali para ganhar dinheiro. Portanto, é um processo mais espontâneo e natural. O repertório é ilimitado. A interação entre estranhos, que começaram a trazer instrumentos diferentes, é outra vantagem que não pode ser desconsiderada.

Foi em um desses acasos que o tenente aposentado Valter Pinto Serbilera encontrou Benigno de Oliveira. Ambos assistiam, calados e cada um no seu canto, a uma mulher tocar o piano na Estação Sé, no Centro da cidade. Serbilera foi criado em uma família de músicos, é autodidata em piano e tocou violino por 47 anos na igreja que frequenta. Benigno estuda música desde os 9 anos, toca gaita, harpa, acordeão, flauta doce, bandolim, guitarra, violoncelo e piano. Benigno, que já viajou pela Europa tocando fado, diz que deve sua vida ao piano. “Tenho 63 anos e nunca chutei uma bola na vida”, conta. “Não sei fazer outra coisa.”

Quando Benigno assumiu o comando do piano na Sé, Valter se apresentou e desde então se encontram todas as sextas-feiras, à noite, na Estação Santana, zona norte de São Paulo. “Ao menos sempre que podem”, dizem. Valter leva o violino, eles revezam os instrumentos e os partilham com quem demonstrar interesse. Serbilera diz que nunca viu pianista igual a Benigno. “Ele e o piano viram uma coisa só, é impressionante.”

Foto: Helena Yoshioka

Como não poderia deixar de ser, ambos só têm elogios ao projeto. “A iniciativa deste senhor é louvável. Não tenho palavras para agradecê-lo”, diz Benigno. O comunicativo ex-policial afirma que se toda favela tivesse um piano, São Paulo seria um lugar melhor para se viver. “Os jovens só caem no crime e nas drogas porque não têm nada para fazer. Se eu fosse vereador, colocaria um piano em toda comunidade carente desta cidade”, sugere.

Irônico é que Levi, como morador do bairro nobre do Pacaembu, é usuário esporádico do sistema de transporte público e pouco vê sobre o gesto que mudou a rotina de tantas pessoas. E admite que quando usa o metrô, o faz mais para acompanhar o projeto “Encontros” do que por necessidade. “Já vi gente simples, humilde, dividir o banco do pianista, demonstrando interesse.”

Com uma biografia tão atuante no cenário cultural brasileiro, pergunto a ele como nunca tinha escutado falar a seu respeito. “Não tenho vida social, não gosto de aparecer e não tenho traquejo para entrevistas”, justifica. “Toda vez que tenho de dar uma entrevista ou fazer um discurso, alguém me representa.” Então o senhor abriu uma exceção para me receber? “Exatamente.” E a que devo a honra? “Ao fato de acreditar que temos muito em comum. Quando soube que você não tinha celular, fiquei chocado. Isso é uma coisa extremamente inusitada, pois não conheço outra pessoa que não tenha. Eu os detesto e tenho três.” Quer dizer que você só resolveu dar sua primeira entrevista porque não tenho celular? “Sim.”

Levi chegou por aqui em 1957, aos 18 anos, e diz que hoje tem muito orgulho de chamar o Brasil de pátria. “Quando vim para cá, não sabia nada a respeito do País”, lembra. “Alguns integrantes da minha família não tinham nacionalidade por serem judeus residentes no Egito.” Levi explica que naquela época o Brasil era o único país que aceitava receber imigrantes apátridas. O navio que trouxe o jovem e sua família fez escala no Rio de Janeiro e depois atracou no porto de Santos. De lá, vieram direto para São Paulo, onde se estabeleceram. “Eu me empreguei no comércio, depois fui vendedor autônomo. Também atuei como corretor no mercado financeiro.”

Um belo dia resolveu juntar suas experiências nos negócios para correr atrás de um sonho. “Como gosto muito de cinema, tive a ideia de montar o cinema itinerante. Logo me empolguei com o lado social do projeto, ao mesmo tempo que percebi que havia um grande mercado para isso.”

Mas o que ainda faz esse homem carismático e alerta a doar pianos e continuar levando cinema a comunidades carentes do Brasil após ter atendido mais de 3 milhões de pessoas em dez anos e viajado de São Paulo até a periferia de Manaus para uma única sessão são as expressões no rosto do povo. “Já peguei muita gente chorando ao ver o cinema pela primeira vez, gente gargalhando, batendo palmas…”

O sucesso que os pianos vêm fazendo nas estações inspirou o projeto Piano no Metrô. Hoje, ao lado de cada um dos instrumentos, já se vê a placa com a inscrição “Projeto Piano no Metrô. Convidamos você a mostrar seu talento“. “Se depender de mim, toda estação terá seu piano. Só estou aguardando o metrô definir novas estações para doar os próximos.” Pergunto, então, o que ele ganha com isso tudo: “Você já ouviu falar no prazer egoísta de dar? Pois é isso. O prazer é todo meu”.


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