Quem conhece a pluralidade artística de Emanoel Araújo não deveria estranhar o convite para uma exposição coletiva como a que fica aberta até 2 de outubro nas galerias do Museu Afro Brasil, no Parque do Ibirapuera, em São Paulo. São cinco mostras, distribuídas pelos amplos espaços do museu, que não necessariamente têm ligação histórica entre si, mas que, intuitivamente, se conectam por variados temas – arte, cultura, memória, paisagem, reflexão.
Cidadão do mundo, esteta privilegiado das raízes da raça negra, Emanoel Araújo escreve a história do museu com as tintas de sua inspiração. A geometria dos espaços do Museu Afro Brasil contribui, e muito, para a execução das propostas que surgem do espírito criativo do artista. Olhando por fora, especialmente à noite, o visitante não imagina que dentro do prédio do museu funcionava, até há alguns anos, uma repartição de burocratas.
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“O museu é como um espelho que reflete a história da África”, diz Emanoel, como se fosse necessário justificar a inclusão, na coletiva, da mostra internacional Artistas Contemporâneos do Benin – pequenino país na região ocidental da África, com população menor que a da cidade de São Paulo. “Belo país. Essa é uma pequena mostra da jovem arte de um povo, que reflete a tradição artística de tempos áureos e datas memoráveis e cujas obras hoje circulam entre Londres e Paris, Suíça e Alemanha.” De fato, os elementos e materiais utilizados pelos cinco artistas africanos compõem o mosaico a que se refere Emanoel e permitem constatar a aproximação da linguagem contemporânea do Benin.
No tour pela ala à direita, logo depois da entrada do Museu com as obras dos cinco artistas africanos, o visitante rapidamente identifica e confirma o briefing do curador. Lá estão as assemblages de Aston, construídas com materiais reciclados; o surrealismo instigante de Zinkpè e suas telas em fundos negros povoados de seres estranhos; as pinturas de Tchif, que lembram rupestres e escavações; o vigoroso traço marcadamente gráfico e quase próximo do grafite de Quenum; e, amarrando essas nuances, o sincretismo do vodum declaradamente expresso nas esculturas e telas de Edwige Aplogan, com os transparentes e luminosos Legbas, aqui conhecidos como Exu.
A audiência de transeuntes vai crescendo pelas alas do museu e Emanoel relaxa a tensão. Isso é tudo o que um curador almeja – ainda mais em um vernissage múltiplo -, mesmo que seja calejado como ele. Interrompe a prosa que já vinha descontraída para receber cumprimentos de um velho e querido amigo que não via há muito tempo: o roteirista e escritor Vicente Sesso, pioneiro das telenovelas brasileiras. Parênteses: foi a partir de uma novela dele, Minha Doce Namorada, já na TV Globo, que a atriz Regina Duarte ganhou o epíteto de “Namoradinha do Brasil”. Pai adotivo do ator e diretor Marcos Paulo, Sesso trazia notícias do hospital, onde o filho havia se submetido a uma cirurgia.
A presença da raça negra na história da dramaturgia brasileira provavelmente não teria o enredo que se conhece se não houvesse existido uma mulher como Ruth de Souza. Sem pieguice, qualquer um que conheça minimamente o roteiro de vida dessa senhora que acaba de emplacar 90 anos de vida e 63 de carreira, tiraria o chapéu e beijaria suas mãos em agradecimento a tudo o que ela fez – e quer continuar fazendo – pelos palcos da TV, do cinema e do teatro.
E foi isso que fez Emanoel Araújo: sintetizou o sentimento coletivo em torno da figura de Ruth com a mostra/tributo em homenagem à Sacerdotisa da Dramaturgia. O título remete literalmente à crônica que o falecido jornalista Artur da Távola escreveu no jornal O Globo, quando Ruth de Souza fechou seus 40 anos de carreira, em 1988. Um teaser do texto (que apresenta a homenagem) e você saberá como o escritor conseguiu transmitir com emoção a química do carisma que envolve a todos que têm o privilégio de conhecer a nossa dama negra: “Não é necessário saber por que Picasso é grande. Basta ver-lhe um quadro. É imediato… Não há explicações para os primeiros acordes da Quinta Sinfonia de Beethoven. Basta ouvi-los… Ruth de Souza possui essa marca divinatória, o carisma”.
“É maravilhoso esse reconhecimento. Eu não esperava. Estou muito orgulhosa, feliz e gratificada por saber que em todos esses anos pude transmitir um pouco do que fiz como atriz” – ela fala pausadamente, como se estivesse em cena.
E está mesmo. Bem a sua frente, um telão de cinema exibe Sinhá Moça, que foi um dos grandes sucessos de sua carreira. Ela parece uma atriz adolescente que acabou de gravar sua primeira cena: “Olha lá, Vilma (amiga dela), agora é aquela cena mais bonita do filme. Faz muito tempo que não assisto a nada em tela grande”.
Nossa primeira dama negra está embevecida. E ansiosa quando conta que não vê a hora de seu mais recente trabalho no cinema sair do forno. “A filmagem terminou há dois anos. Chama-se Primavera, do Carlos Porto. Nele, faço três personagens. Mas falta financiamento para ser finalizado.” Enquanto isso, como atriz contratada da TV Globo, espera ser escalada em breve para uma das próximas novelas. Seria um belo presente de aniversário!
Enquanto Ruth recebe os cumprimentos de Andrea Matarazzo, o Secretário de Estado da Cultura de São Paulo, a reportagem vai conferir as outras três mostras – todas de fotografia, mas cada uma com um enfoque específico. Uma delas, Orlando Azevedo – Monte Roraima, Paraíso Perdido, percorre 70 mil km pelo País em um jipe. O alvo é o Monte Roraima, na divisa do Brasil com Venezuela e Guiana – confluência de esótericos, biólogos, antropólogos, místicos e curiosos. A mostra tem 30 imagens inéditas.
Em outra ponta, Tetê de Alencar – Cinderella Flash é projeto pessoal da artista, que apresenta fotos dela mesma em roupas de grifes e estilistas badalados, como Galliano, Gaultier, Louis Vuitton e Christian Dior. No contraponto das duas mostras, Emanoel Araújo resgatou o sonho do fotógrafo Fernando Goldgaber. Fernando Goldgaber, de olhos abertos para o Brasil reúne fotos em preto e branco que o autor produziu em sua melhor fase, nos anos 1960-1970, e que não teve tempo de lançar quando vivo.
Se a fotografia predominou no conjunto das mostras inauguradas simultaneamente, não menos relevante é destacar que a iniciativa do Museu Afro Brasil acerta ao oferecer conteúdos artísticos e diversificados. Vale a pena sair da rotina e aprender ou ampliar conhecimentos sobre as nossas raízes de País multirracial. E vida longa a Ruth de Souza!
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