Duplo Canto, do poeta sino-francês François Cheng, é, na verdade, triplo, pois, além da coletânea que dá título ao volume, contém Cantos Toscanos e Ao Longo dum Amor. Plenamente consagrado na França, o autor, sendo membro da Academia Francesa de Letras, circula na Europa como um dos maiores poetas da atualidade. Logo, trata-se de um privilégio poder contar com essa obra tão bem traduzida e tão bem editada no Brasil. Acolher o empreendimento intelectual de Bruno Palma – tradutor e organizador do volume – será, portanto, não apenas um gesto de extrema urbanidade, mas também uma declaração de apreço às coisas do espírito em geral e de respeito pela poesia em especial.
Impresso em formato maior que o padrão (19 cm x 28 cm), o livro recebeu particular atenção da Ateliê Editorial, que concebeu um projeto à altura da qualidade artística dos poemas de Cheng. Entre outras virtudes do volume, o leitor encontrará o texto original francês ao lado da versão portuguesa, em harmoniosa disposição tipográfica, de modo que a densidade artística dos versos combine com a elegância do volume. As pessoas dotadas de senso estético não terão, talvez, dificuldade em apreciar no volume a arte de fazer livro – que pode funcionar como uma espécie de convite à extrema delicadeza dos versos de Cheng, vertidos em modelar exercício de tradução para o português.
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Em rigor, os poemas não foram apenas traduzidos, mas verdadeiramente transcriados pelo sensível juízo crítico de Bruno Palma, que fornece nessa obra claro exemplo de como se deve verter poesia para outro idioma. Quem se dá ao prazer de abrir o volume em qualquer dos poemas, verá, ao primeiro lance, que eles funcionam como verdadeiras criações originais em português. Isso não acontece com frequência e, quando acontece, deve ser reconhecido e registrado. Além disso, o tradutor redigiu prefácio e notas ao texto dos poemas, que não só esclarecem sentidos menos evidentes, mas também situam o poeta em seu contexto de origem e no atual ambiente de intervenção.
Iniciativa intelectual, cuidado na edição, tradução primorosa – tudo isso contribui para fazer desse lançamento um evento cultural digno de atenção. Todavia, a razão primordial do valor de Duplo Canto encontra-se, evidentemente, na invulgar qualidade artística dos poemas, concebidos e escritos em francês por um cidadão do mundo. Nascido e criado na China, François Cheng transitou por vários países do Ocidente, assimilando diversas línguas e as respectivas tradições culturais. Prova de sua intrínseca inserção na cultura da França encontra-se na circunstância – aliás, nada desprezível – de ele ser um dos 40 membros da Academia Francesa de Letras.
Embora componham um conjunto harmônico quanto ao estilo, os três livros de Duplo Canto possuem autonomia temática. Cada um possui cenário ficcional distinto, sendo igualmente sintéticos e singulares em sua admirável imaginação poética. O primeiro, que dá título ao volume, contém um diálogo da voz lírica com o mundo vegetal e mineral. O segundo, Cantos Toscanos, apresenta um conjunto de reflexões sobre os acidentes da paisagem italiana do título, animizada pelo contato com a poesia. O terceiro, Ao Longo dum Amor, oferece poemas líricos sobre a relação entre pessoas, sobre a existência e sobre a experiência do indivíduo com a paisagem natural em que se inserem os amantes.
No primeiro livro do volume, Cheng imagina como seria a voz das coisas, dando expressão às árvores, às rochas e aos pássaros. Difícil imaginar um poeta ocidental, viciado pelas manias do eu, que concedesse, de modo tão convincente e atual, o direito de fala aos elementos da natureza. Sem perder a densidade lírica, trata-se de um livro objetivo, em que os elementos celebram a harmonia das partes com o todo, sugerindo que a espiritualidade da pessoa precisa se comunicar com alma do cosmos. Concebido conforme certo paganismo essencialista, esse livro pode ensinar ao leitor de poesia do Ocidente a noção de que a matéria também possui uma dimensão espiritual.
O mesmo tom de comunhão com o cosmos preside aos dois outros livros de Duplo Canto, com a diferença de que, tal como o primeiro, cada um possui inconfundível identidade formal. Em Cantos Toscanos, Cheng adota uma espécie de forma fixa inédita no Ocidente (sextilha + um verso) para captar o sentido íntimo da paisagem europeia, oferecendo uma comovente modalidade de poemas seriados, em que o rigor da forma se alia à densidade do assunto. Os poemas lírico-existenciais de Ao Longo dum Amor associam-se a certo paganismo clássico em que a celebração do corpo atinge o ápice da plenitude quando se percebe que a mais intensa espiritualidade decorre do respeito à materialidade da vida.
A poesia de François Cheng oferece inúmeras outras surpresas. Um delas, certamente, será a fuga absoluta ao vulgar e ao óbvio, visto que seus poemas se orientam pelo que se poderia chamar “poética da sutileza”, em que o ritmo, as imagens e os temas se combinam para produzir uma elocução sábia sem ser difícil e simples sem ser banal. Reflexo da condição do poeta, os poemas de seu livro encarnam a voz de um ancião reflexivo, em que a experiência da vida se associa ao saber técnico da arte para compor um irrepreensível canto ao homem, em sua relação com os semelhantes, com as coisas e com a natureza.
*Ivan Teixeira é professor livre-docente de Cultura e Literatura Brasileira na ECA-USP, tendo se aposentado como full professor da mesma disciplina na University of Texas em Austin. Escreveu, entre outros, O Altar & o Trono: Dinâmica do Poder em O Alienista.
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