Enquadrar o trabalho da mineira Cinthia Marcelle não é tarefa das mais fáceis. Não cabem a ela os títulos de pintora, videomaker, escultora. Uma marca em sua trajetória iniciada nos anos 2000 é transitar pelos suportes, dedicando-se mais a forjar no espectador, por meio de objetos, vídeos e formulações espaciais, a sensação de presenças anímicas do que propriamente a investigar as possibilidades oferecidas por uma única mídia.
Para a 29ª Bienal de São Paulo, em 2010, Marcelle criou um quadro-negro de 1,20 m de altura por 8,40 m de cumprimento: percebia-se na obra que o que fora escrito anteriormente em giz já havia sido apagado, e havia acúmulo de pó branco nas bordas da lousa e também no chão. Em dois vídeos, O Século (2011) e Rua de Mão Única (2013), ambos de uma série chamada B, feitos com Tiago Mata Machado, encenam-se rebeliões em espaços públicos. No primeiro, objetos são jogados sobre o asfalto e vão se acumulando. No segundo, há confronto de um grupo de pessoas e algo oculto pelo enquadramento, mas que se manifesta com fogo, cuja luz se expande e recua no canto da tela. São dois trabalhos formalmente distantes entre si.
Escolhida para ocupar o Pavilhão Brasileiro na Bienal de Veneza neste ano (a megamostra começa em 13 de maio), desde o ano passado Marcelle tem elaborado seu projeto em permanente diálogo com o curador Jochen Volz. “A ideia da curadoria nasceu de uma tentativa de saber como uma exposição podia funcionar de forma satisfatória em uma sala pequena. Achei que uma criação coletiva ali poderia ser prejudicada”, diz o curador, que assinou a Bienal de Arte de São Paulo no ano passado e neste ano assume a diretoria da Pinacoteca do Estado.
Volz ressalta as características da arquitetura do pavilhão, os traços de modernismo brasileiro e também o fato de que ele passou por reformas, resultando em “uma fragilidade estrutural”. A observação prévia das instalações foi determinante para que o curador chamasse “uma artista que, na prática, consegue dominar o espaço expositivo com total força escultórica”.
Segundo Volz, a instalação proposta por Marcelle será aberta com uma intervenção que cria um desnivelamento no piso do pavilhão. “Quem entra ali perde um pouco a noção de equilíbrio. É uma obra que ativa a perspectiva do espectador e que propõe incentivar mais as descobertas do que os julgamentos”, diz. Volz diz que o conjunto também inclui, mais adiante, um vídeo produzido em Belo Horizonte, retratando pessoas em um lugar suspenso, com alusão a situações de rebelião em presídios ou de náufragos sobre uma plataforma flutuante. “A sensação é de perigo”, define. Embora a associação com as rebeliões em presídios brasileiros no Norte, Nordeste e no Espírito Santo no início do ano seja natural, Volz conta que o filme foi pensado no ano passado e não retrata essas situações específicas.
Para ele, Cinthia Marcelle representa uma geração de artistas que está claramente a par da história da arte brasileira do século XX, mas desenvolveu na última década um vocabulário que une experimentação visual com rigor conceitual. Ela participou de individuais na América do Sul e na Europa, da 11ª Bienal do Sharjah (2015) e apresentou a instalação Dust Never Sleeps, em Viena (2014). Em 2006, recebeu o International Prize for Performance por Gray Demonstration. Em 2010 foi agraciada na primeira edição do Future Generation Prize.
Questionado sobre o papel do curador em um momento de proximidade com a artista, em que o trabalho é debatido e reelaborado por meio de intenso diálogo, Volz refuta a ideia de curadores como coautores dos trabalhos com os quais se envolvem. “A relação de artista com curador pode ser sempre muito próxima, mas acho melhor pensar o curador como sócio em um crime do que como um coautor. Não me sinto coautor de nada”, diz.
Além da presença de Marcelle no Pavilhão Brasileiro, quatro outras representações nacionais estarão na mostra principal de Veneza, que terá como tema Viva Arte Viva. São eles Ayrson Heráclito, Erika Verzutti, Ernesto Neto e Paulo Bruscky.
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