Talento ímpar da MPB, Luiz Melodia, o “Poeta do Estácio, parte aos 66 anos

O cantor e compositor Luiz Melodia. Foto: Reprodução / Divulgação
O cantor e compositor Luiz Melodia. Foto: Reprodução / Divulgação

Morreu na madrugada desta sexta-feira (4) aos 66 anos, em decorrência de um câncer de medula óssea, o cantor e compositor Luiz Melodia. Diagnosticado com um mieloma múltiplo no início deste ano, o artista teve alta do Hospital Quinta D’Or, no Rio de Janeiro no início de junho. Seu quadro de saúde, no entanto, voltou a se agravar na última quinta-feira (3). Luiz Melodia deixa a viúva Jane Reis, sua empresária, e um filho, o rapper Mahal.  

Intérprete e compositor de talento ímpar, conhecido como o Poeta do Estácio, Luiz Carlos dos Santos nasceu, em 7 de janeiro de 1951, no  Morro do São Carlos, um dos berços do samba carioca, no bairro do Estácio, zona norte do Rio de Janeiro. 

E foi justamente em São Carlos que aconteceu a descoberta de sua enorme vocação para a música. Tinha apenas 19 anos quando recebeu a ilustre visita do poeta Waly Salomão. O baiano subiu o morro atrás de um segredo dos mais quentes: chegou lá por recomendação de sua amiga Rose, habituée das rodas de samba que ficou fascinada ao conhecer a leva de brilhantes composições apresentadas pelo menino esquálido.

Estarrecido com a força criativa de Luiz que, já havia se aventurado em grupinhos de rock, como Os Instantâneos e Os Filhos do Sol, Waly saiu em campanha de projeção do nome do compositor, inserindo o rapaz nos meios influentes da Zona Sul carioca.

Não tardou para a novidade ser reverberada por outro grande poeta, o também jornalista piauiense, Torquato Neto, em sua coluna Geleia Geral no jornal Última Hora. Logo, escoltado por seu violão, Luiz passou a frequentar encontros musicais nas casas de Suzana de Moraes, filha do poetinha Vinicius, e do “maldito” Jards Macalé.

Mas a maior vitrine alcançada por ele naquele ano de 1971 foi mesmo o show Fa-Tal – Gal a Todo Vapor. Bastou uma apresentação de Pérola Negra, feita pessoalmente pelo próprio Luiz, por recomendação de Waly, para Gal se apaixonar pela canção e emprestar sua voz pungente a uma interpretação carregada de emoção em seu novo show.

Produzido pelo poeta baiano, sob o pseudônimo Waly Sailormoon, o espetáculo tornou-se grande sucesso de público no Teatro Thereza Rachel, em Copacabana, ganhou registro no LP Fa-Tal – Gal a todo vapor (saiba mais) e colocou de vez o nome de Luiz Melodia na boca da juventude carioca (alcunha artística, aliás, adotada em reverência a seu pai, o sambista Osvaldo Melodia, um dos bambas do Morro do São Carlos).   

Em 1973, por recomendação do instrumentista e arranjador baiano Perinho Albuquerque imediatamente acatada pelo diretor artístico da Philips, o grande Roberto Menescal, Melodia entrou em estúdio para lançar seu cultuado álbum de estreia, Pérola Negra.

Em matéria do repórter Marco Aurélio Canônico, publicada no jornal Folha de S. Paulo e comemorativa aos 40 anos do lançamento de Pérola Negra, Melodia relembrou aquele momento mágico e divisor, tempo de grandes transformações em sua vida. “Eu não tinha a fissura de ser artista. Gostava de tocar e de cantar, mas não pensava em ganhar a vida com música. Tive a felicidade de estar na hora e no local certos.”

Outro fator determinante para o sucesso imediato de Luiz Melodia foi o fato de ele, então, estar mercadologicamente representado pelo empresário Guilherme Araújo, nome forte na indústria fonográfica e célebre por dar voz aos tropicalistas: “Eu tinha, de certa forma, costas bem quentes: ele (Guilherme) tinha todo mundo, o Caetano, o Gil, a Gal. Me tornei o caçula, tinha todo um aparato que confiei e foi consistente”, recordou Melodia ao repórter.

Mas o sucesso imediato de Luiz não se deveu ao fato de estar esteticamente alinhado com os tropicalistas. Longe disso, impregnado de beleza, seu álbum flertava com texturas acústicas que ora lidava com estruturas de blues, outrora com o rock, com o samba. Havia nele elementos antropofágicos, mas sutis e muito distantes das ações panfletárias e do rebuliço estético de Gil e Caetano.

Fato que evidenciou grande personalidade do compositor. Predicado elevado às melhores consequências em Maravilhas Contemporâneas, seu segundo álbum, de 1976. Coordenado por João Araújo, “manda-chuva” da Som Livre e pai do futuro astro do rock Cazuza, o álbum foi lançado pelo selo global e produzido por Guto Graça Mello.

Nele, é patente o acerto de escolhas de Melodia, que reuniu um time da pesada para o registro. A começar pelo par de arranjadores, Oberdan Magalhães, líder da Banda Black Rio (que também toca sax alto, tenor e flauta transversal, com exceção de Juventude Transviada, cuja flauta foi gravada por Pestana), e o multi-instrumentista Perinho Albuquerque. 

Se Pérola Negra já havia escancarado o dom tamanho do compositor, em Maravilhas Contemporâneas essa faceta é ainda mais evidente em faixas como Congênito, Presente Cotidiano, Veleiro Azul, o clássico instantâneo Juventude Transviada, grande sucesso de 1976, impulsionado por sua inclusão na trilha da novela Pecado Capital, e Questão de Posse. Pouco depois de lançar Maravilhas Contemporâneas, Melodia sofreu um acidente automobilístico que o afastou dos palcos por quase um ano, adiando para 1977 o lançamento do álbum. 

Em 1978, com o lançamento de Mico de Circo, Melodia emplacou outro sucesso arrebatador, sua interpretação de A Voz do Morro, de Zé Keti. Entre álbuns inéditos e de releituras de seu repertório, lançaria depois outros dez títulos. Em destaque, discos como Felino (1983), Claro (1987) e Pintando o Sete (1991), este último consagrado com a releitura de Codinome Beija-Flor, de Cazuza e Ezequiel Neves.

Em 2007, com Estação Melodia, o artista prestou tributo a alguns de nossos maiores sambistas, entre eles Cartola (Tive Sim), Geraldo Pereira (Cabritada Mal Sucedida), Ismael Silva (Contraste), Haroldo Lobo e Wilson Batista (Recado Que Maria Mandou). Nele, também reverenciou seu pai, ao interpretar a canção Não me Lembro à Toa.

Em maio de 2011, em entrevista à Brasileiros (leia a íntegra), o maestro Arthur Verocai deu o seguinte depoimento sobre a experiência de trabalhar com Melodia em Mico de Circo (antes, ela já havia arranjado Prá Aquietar, de Pérola Negra, com guitarra marcante de Hyldon). “Sou grande fã do Melodia. Estava escrevendo os arranjos de Presente Cotidiano (veja o clipe feito pelo Fantástico), aquela que diz assim: ‘Tá tudo solto na plataforma do ar/tá tudo aí…’. Essa música é uma marchinha em compassos de três tempos, mas ele cantava um compasso em três e outro em quatro: ‘Quem vai querer comprar banana…’. Daí eu me perguntava: ‘Essa música é em três ou em quatro? Se eu fizer assim, da maneira que está, nego vai dizer que eu sou doido!’. Mas ele não estava nem aí se eram três, quatro ou sete. Fazia isso sem pensar. Não tinha essa de dizer: ‘Vou fazer uma música em três por quatro!’. Simplesmente acontecia, pela força intuitiva do cara.”

O mais recente álbum do artista foi  Zérima. Lançado em 2014, o trabalho rendeu a Luiz Melodia o título de Melhor Cantor de MPB no Prêmio da Música Brasileira. Absolutismos a parte, não resta dúvidas que perdemos hoje um dos maiores tesouros de nossa música popular.   

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