A esfinge decifrada

Todos querem Miles e a exposição Queremos Miles!, que já passou pelo Rio de Janeiro e está em cartaz no SESC Pinheiros, zona oeste de São Paulo, até 22 de janeiro, satisfaz em grande parte esse desejo. Antes de mais nada, há de se louvar a Cité de La Musique pela organização da mostra, sob a curadoria de Vincent Bessières, que já havia nos dado, em 2009, Gainsbourg – Artista, Cantor, Poeta, etc., com tudo, tudo sobre o pai de Charlotte, Serge Gainsbourg. Os franceses acostumaram-se a valorizar o que a América deixa escapar. O desenhista Robert Crumb mora lá, Julio Cortázar morou lá. Até ser endeusado pela turma do Cahiers Du Cinéma (Truffaut, Godard e outros), Alfred Hitchcock era considerado um cineasta comercial de segunda.

Queremos Miles! abre uma janela para quem não conhece o músico e permite uma visão privilegiada para seus fãs. Percorrendo o labirinto construído no segundo andar da unidade, o público tem uma noção cronológica das fases de Miles por meio de discos, filmes, roupas, instrumentos, partituras, fotos, documentos, um tesouro inestimável – We Want Miles é o título de um disco ao vivo do trompetista, lançado em 1982 após um silêncio de cinco anos. A divisão em sete módulos estabelecida pelo Cité de La Musique é definitiva.
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QUEM NÃO QUER MILES?

Discografia selecionadaBlue Haze (1954)
Cookin, Relaxin, Workin e Steamin
(1957-1959) todos com o primeiro quinteto
Miles Ahead, Sketches of Spain, Porgy and Bess (1957-1959), com Gil Evans
Kind of Blue (1959)
ESP (1965), Filles de Kilimanjaro (1969), com o segundo quinteto
In a Silent Way (1969)
Bitches Brew (1970)
On the Corner (1972)
The Man Eith the Horn (1981)
Tutu (1986)

Na primeira delas, De Saint Louis a Rua 52 (1926-1948), vemos um jovem negro nascido em uma família rica de Alton, Illinois, que chega a Nova York aos 18 anos, já com uma mulher e uma filha, e em vez de frequentar bonitinho a prestigiosa Juillard School vai para o Harlem e passa a tocar com seu ídolo Charlie Parker. Em Out of The Cool (1948-1955), Miles vai para a França, namora a musa existencialista Juliette Greco e, depois de todo o reconhecimento europeu, enfrenta o desprezo racista em seu país. É o mergulho nas drogas aliado a uma criatividade sem precedentes.

Miles Ahead (1955-1959) é um período extremamente fértil. Miles forma seu primeiro quinteto – Philly Joe Jones, bateria; Red Garland, piano; Paul Chambers, baixo; e John Coltrane e, depois, Cannonball Adderley, saxofone – e inicia sua parceria com o arranjador Gil Evans, grava a trilha do filme Ascensor para o Cadafalso, de Louis Malle, entre outros feitos. Um deles é ser espancado pela polícia apesar da fama, o que redobra sua atenção. Miles Smiles (1960-1967) marca o nascimento do novo som do músico, com o novo quinteto – Wayne Shorter, sax; Tony Williams, bateria; Herbie Hancock, pianos; Ron Carter, baixo (leia texto na página seguinte). Em Miles Elétrico (1968-1971) – atraindo para junto de si nomes como os tecladistas Chick Corea, Keith Jarrett e Joe Zawinul, além do guitarrista John MacLaughlin -, o artista grava o álbum Bitches Brew no mesmo dia em que o Festival de Woodstock acabava e, no ano seguinte, 1970, apresenta-se como principal estrela e maior cachê ao lado de Jimi Hendrix, na Ilha de Wight.

RON CARTER, A LENDA DE BONÉ E PALETÓ

Aos 73 anos, natural de Ferndale, Michigan, Ronald Levin Carter é uma força. Seu nome figura em pelo menos três mil capas de disco. O som que tira de seu contrabaixo é inconfundível. Quando foi chamado para tocar com Miles, já tinha o Master’s Degree da Manhattan School of Music e havia integrado os grupos do baterista Chico Hamilton, como baixista, e do saxofonista/flautista Eric Dolphy, como celista – instrumento que abandonou com a idade. Nesse período, ele, Wayne Shorter, Herbie Hancock e Tony Williams (o único já falecido), que formaram o segundo quinteto de Miles, modificaram para sempre sua música e, portanto, a música do mundo.

Depois dessa passagem, a carreira do contrabaixista deslanchou com a CTI Records, sendo Blues Farm(1973) um marco do estilo fusion. Aposentado há dois anos (lecionou por 18), limita-se a dar aulas particulares para, no máximo, cinco alunos, sobre história do jazz, composição e arranjo. Para ele, teoria e ouvido são igualmente importantes. Não funcionam separadamente.Carter esteve no Brasil para um show paralelo à exposição Queremos Miles!, realizado nos dias 21, 22 e 23 de outubro no SESC Pinheiros, em São Paulo. Ele se apresentou de maneira irrepreensível com o quarteto formado há 15 anos, composto por Payton Crossley, bateria, Rolando Morales, percussão, e Irene Rosnes, piano.De boné de beisebol, camisa listrada, paletó e tênis, muito alto, Carter recebeu a Brasileiros no lobby do hotel super bem-humorado e, quando viu alguns jovens de uniforme, já quis saber se era uma equipe de basquete, sua segunda paixão.

BATE-PAPO

INSTRUMENTOS Hoje, ele só toca violoncelo para “assustar as pessoas ou se enganar”. O baixo elétrico, deu há 20 anos para um de seus dois filhos que trabalha com construção e toca aos fins de semana, o outro é artista-pintor. Diz que nunca mais ouviu os discos que gravou com Miles por falta de tempo. Agora, está interessado novamente. Tocou com Wayne Shorter recentemente em um evento. Sempre que podem se visitam (Carter mora em Nova York e Shorter, na Califórnia).

ENCONTRO COM MILES Ele não foi atrás de Miles. Em 1963, Carter tocava com o quarteto do trompetista Art Farmer quando o músico o convidou para uma temporada de seis semanas na Califórnia. Carter disse: “Eu já tenho um emprego, com Farmer, fale com ele”. Farmer o liberou, e o novo quinteto estreou na semana seguinte. Logo gravou o disco Seven Steps to Heaven, a primeira de 15 colaborações com Miles. Como a banda tocava standards, eles não ensaiavam. “Miles apenas dizia: oito horas no palco ou tal hora no aeroporto”, lembra Carter, que, em ESP (1963), tem três composições. “Passávamos as partituras, um, dois, três, gravando!”.

MÚSICA BRASILEIRA Carter diz que está ouvindo um disco de Tom Jobim com Miúcha que ganhou no mês passado e está achando maravilhoso. “Principalmente a voz dela”, diz. Sobre Hermeto Pascoal, afirmou: “Meu amigo. Fizemos discos juntos. Não o vejo há dois anos, desde que mudou do Rio de Janeiro (para Belo Horizonte) e casou novamente. Sempre casando!”

SÃO PAULOO músico havia chegado de Nova York duas horas antes da entrevista, onde gravou com um cantor japonês. “Não me lembro do nome, muito longo”, brincou. “Mas bom.” De São Paulo, voltaria para Nova York de onde parte em turnê pela Europa com um trio, trazendo Mulgrew Miller ao piano e Kevin Eubanks na guitarra. Sobre as apresentações em São Paulo, disse que a cada noite o show era melhor: “Tudo que desejo é que as pessoas saiam assobiando o que tocamos”. E resumiu: “É uma vida boa. Tocar as notas certas, viajar e conhecer novos amigos. Como vocês”.

Em On The Corner (1971-1979), Miles percorre o mundo com uma banda agitada. Um tombo, que prejudicou seus quadris, e o consumo de drogas, mais recreativas que a heroína, acabaram com sua saúde. Em 1974, apresentou-se no Brasil com um guitarrista canhoto, negro e barulhento que imitava Hendrix, Dominique Gaumont, que ficou pouco na banda. Em São Paulo, teve uma overdose e foi entubado.

Star People (1980-1991) é de fato um ícone planetário. Junta ao repertório músicas de Cindy Lauper e Michael Jackson. Nesse período, mais precisamente em 1986, o músico vem ao Brasil. Cinco anos depois, morre na Califórnia.

Para se ter ideia da importância de Miles Davis, basta dizer que seus músicos formaram bandas hoje consideradas eternas. Hancock, o Headhunters; Corea, o Return to Forever; Zawinul e Shorter, o Weather Report, que revelou Jaco Pastorius; Williams, o Lifetime; MacLaughlin, a Mahavishnu Orchestra; e por aí vai. Jarrett e Carter seguiram em carreiras solo.

» Queremos Miles! SESC Pinheiros. Rua Paes Leme, 195, São Paulo (SP), (11) 3095-9400. Até 22 de janeiro de 2012


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