O novo sempre vem

Reverberando um prognóstico pessimista que parecia acometer toda a música popular deste novo século, em agosto de 2004, em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, o historiador José Ramos Tinhorão decretou a morte da canção em terras brasileiras. Para muitos, mais uma provocação de um niilista nato, o novo alerta de Tinhorão pouco repercutiu, mas encontrou defesa meses depois na voz de um dos maiores compositores do País. Em dezembro do mesmo ano, foi a vez de Chico Buarque, em entrevista ao mesmo jornal, jogar sua pá de terra sobre o gênero que, desde o final do século 19, sustenta a importância de ser a “fórmula” musical mais popular e consumida ao redor do mundo. Morta ou não, fato inconteste sobre a canção neste novo milênio é que o beco sem saída em que ela foi parar faz esquina com a enorme crise que assolou a indústria fonográfica, a cada dia mais obsoleta pela liberdade de produção e distribuição musical que os adventos da internet e os avanços tecnológicos possibilitaram aos novos artistas. Algumas horas de pesquisa em blogs e redes sociais dedicadas à produção musical revelam que muito tem sido feito, mas, embora a internet tenha servido de palco para essa volumétrica geração de músicos que defendem uma sobrevida da canção, os meios tradicionais de aproximação com o público – veiculação em rádios, TVs e shows – têm sido privilégio de poucos. É nessa seara de incertezas e muitos esforços empreendidos que duas pequenas casas de shows, a Casa de Francisca, em São Paulo, e a Casa de Seu Jorge, em Recife, têm acolhido a nova produção de centenas de novos compositores brasileiros.

Deslocamento espacial e temporal no coração de São Paulo
Em uma quase centenária casa da Rua José Maria Lisboa, a poucos quarteirões da Avenida Paulista, um segredo bem guardado tem sido compartilhado por entusiastas da música. Fundada em 2006, pelos amigos Rubens Amatto e Rodrigo Luz, a Casa de Francisca – nome escolhido em homenagem à primeira proprietária, que a construiu em 1913 – se tornou porto seguro de centenas de novos artistas. Ao longo dos últimos cinco anos, o aprazível interior restaurado da pequena casa – que comporta exatos 47 pagantes – já acolheu mais de 1.300 shows e um sem-número de compositores e instrumentistas. Rubens é designer gráfico e Rodrigo, fotógrafo, desdobram-se em uma agenda ensandecida para driblar jornadas duplas e realizar ao longo de cada mês outros 30 novos shows. Mas se engana quem pensa que o propósito maior da aventura empreendida pelos dois é simplesmente oferecer música para um público ávido por novidades. “A gente até brinca e diz que detesta música, mas ela sempre teve aqui um papel de integração de outros elementos que, reunidos, proporcionam experiências singulares. Recebemos as pessoas como se estivéssemos em nossa própria casa, em uma espécie de troca íntima, e procuramos ser sinceros em nossas escolhas. Consequentemente, descobrimos a melhor maneira de sermos sinceros com o outro”, revela Rubens.

Essa transparência imposta pelos dois demandou pequenos desafios “com o outro”, como a dificuldade de esclarecer aos marinheiros de primeira viagem que a casa serve uma única marca de cerveja artesanal, que o cardápio não segue nenhuma linha – “uma colcha de retalhos de tudo que a gente gosta”, como define Rubens -, e que a casa não é um “barzinho de MPB”. O horário de apresentação dos artistas é sagrado e o ritual de reverência se repete: “Procuramos oferecer um espaço para o músico experimentar coisas que nunca ousou fazer e até se dar ao luxo de poder errar. Tudo é tão programático e engessado nos shows que se vê por aí, que o cara não pode cometer um deslize sequer. Aqui, o artista tem a chance de humanizar seu trabalho. Fizemos esse espaço para realizar muitas vontades que tínhamos e o DVD do Arrigo representa muito para nós”. Rodrigo se refere ao DVD Arrigo Barnabé em Caixa de Ódio, registro, em parceria com o Canal Brasil, do show dedicado à obra de Lupicínio Rodrigues, apresentado mais de uma centena de vezes no palco da Casa de Francisca por Arrigo, o pianista Paulo Braga e o cantor Sergio Espíndola. “Arrigo levou esse espetáculo a mais de cinco mil pessoas, ao longo de mais cem shows, público que ele conseguiria facilmente reunir em uma ou duas apresentações, mas em lugar nenhum ele teria estabelecido a mesma relação de intimidade com essas pessoas. Para nós, que acompanhamos tudo, é patente a evolução do show, foi como um work in progress”, enfatiza Rubens.

O lançamento do DVD – que acontecerá em 16 de novembro no Cine Áurea – defensor do título de “mais tradicional cinema pornô de São Paulo” -, é o pontapé inicial para planos mais ambiciosos. A maioria dos shows realizados na casa ganhou registro audiovisual ou ao menos de áudio, e os amigos já vislumbram a criação de um selo para divulgar essa produção. “Lógico que nossa visão crítica deixa perceber que um grande volume dessa produção tem um anseio de visibilidade maior que o comprometimento com a música, mas tem muita gente de real valor produzindo obras singulares e verdadeiras. Pode haver em nós uma visão muito romântica e ingênua, mas é essa crença na troca de experiências que faz a gente tocar esse projeto com todas as forças. Costumamos dizer que é aqui que brincamos de viver e de ser felizes”, celebra Rubens. Que nossa música e nossos ouvintes, acolhidos por defensores tão apaixonados, desfrutem dos mesmos prazeres.

Da bossa parisiense ao Recife musical
Em 2008, após uma série de idas e vindas a Paris – que somaram mais de dois anos na capital francesa e aventuras memoráveis, como os quase sete meses vivendo sem endereço fixo à custa de shows em bares noturnos, aulas de violão e pronúncia do português para franceses apaixonados por bossa nova -, o violonista recifense Raphael Costa voltou ao Brasil e tentou emplacar a carreira de compositor em bares de sua cidade natal. Encontrou um cenário nada otimista para novatos como ele. Muita música sendo produzida e, ironicamente, a quase inexistência de espaços para levá-la ao público. Dois anos mais tarde, Raphael viu o sonho de ciceronear músicos locais e de todo o País, materializado em sua Casa de Seu Jorge (uma homenagem ao pai, Ricardo Jorge). “Morei dois anos em Paris e frequentei pequenos clubes de jazz. Sempre achei esse tipo de ambiente mais humano e mágico e, em Recife, temos uma carência enorme de espaços para shows pequenos e médios, por conta dessa tradição expansiva de promover atrações gratuitas para 10, 15 mil pessoas. Eu não tinha talento algum para negócios, mas conhecia boa parte da cena musical da cidade e elaborei uma lista inicial dando pistas de que entre novos artistas e gente estabelecida, mas acessível, teria como agendar mais de cem shows. Hoje, temos uma lista de quase 200 nomes à espera para tocar”, celebra Raphael.

Sediada em uma aprazível edificação térrea dos anos 1950, com vestígios de influência modernista, na divisa entre Recife e Olinda, a Casa de Seu Jorge, ao longo de seu primeiro ano e meio de existência, já promoveu mais de 250 shows e acolheu cerca de 200 diferentes artistas. A exemplo da Casa de Francisca, na “prima” recifense, o ritual se repete a cada apresentação: o serviço de cozinha é suspenso, o silêncio reina absoluto nas mesas e a reverência aos músicos são posturas obrigatórias. A boa repercussão dos primeiros shows logo trouxe artistas de maior visibilidade ao espaço que, hoje, após uma pequena reforma, acolhe um público de até cem pessoas: “Recentemente, tivemos shows de Zé Renato, Marcelo Jeneci, Dominguinhos, Elba Ramalho e estamos negociando a vinda de Dori Caymmi. Meu grande sonho é trazer para cá Paulinho da Viola. O dia em que isso acontecer, confesso, perderei a compostura!”, diverte-se Raphael, fã passional do grande compositor carioca.

Defensor ortodoxo da música brasileira, o violonista, que descobriu a paixão pelo instrumento ainda criança nas rodas musicais da mãe, Flor, e do tio, Flávio, não desmerece, mas faz distinção entre sua proposta e outras, como as do coletivo Fora do Eixo, rede de colaboração on line que agrega iniciativas e promove festivais ao redor do País, mas que privilegia uma produção que pouco ou nada tem a ver com nossas tradições musicais. “O Fora do Eixo, por exemplo, é uma ideia genial, mas em termos de conteúdo é muito restritiva. Nenhuma atração defendida por eles, geralmente, esse sub-rock brasileiro, tocaria na minha casa. Acho até que pode haver autenticidade nesse tipo de música, mas duvido que alguém como Tom Jobim tocaria no Fora do Eixo. Posso estar errado, mas, penso eu, foi graças à riqueza da música brasileira que me virei naqueles sete meses em Paris. Negar nossas raízes e nossa produção musical é negar o que temos de melhor.” Às vésperas de lançar seu primeiro álbum autoral, Raphael se apresentou no final de setembro na Casa de Francisca e enfatiza as boas perspectivas que tem testemunhado. “Sou muito otimista com os novos artistas e as coisas estão acontecendo. Posso afirmar que sim, pois sou testemunha ocular, não é ninguém que está me dizendo, não!”, diverte-se.


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