Abaixo a ditadura do futebol brasileiro

Toda parte do mundo por onde trafego, existem dois assuntos que não escapam de qualquer pauta quando o meu mais novo interlocutor descobre que o seu companheiro de prosa carrega um passaporte verde-amarelo (que na realidade agora é azul). O primeiro, como não poderia deixar de ser, é o futebol. Do taxista do aeroporto, passando pela recepcionista do hotel, o porteiro da universidade, até o chefe de departamento de neurobiologia de qualquer universidade do mundo, a menção das minhas origens brasileiras invariavelmente desencadeia algum comentário sobre as proezas dos heróis canarinhos, que, há pelo menos quatro gerações, encantam povos das mais diferentes culturas, crenças, classes sociais e origens étnicas.

Assim, nesses 25 anos de andanças, eu cheguei à conclusão de que o Brasil não é apenas o País do futebol, na realidade, somos a verdadeira razão pela qual a marca desse esporte bretão se transformou em um espetáculo global, cercado de paixões incandescentes e amores duradouros, como raramente se vê em outros aspectos da vida cotidiana. Parece até mentira, mas não há qualquer dúvida de que grande parte desse sucesso sociológico, aliado aos vultosos lucros auferidos com um dos negócios mais rendosos do planeta, teve suas origens nas prodigiosas e inesquecíveis artimanhas, malabarismos e ginga de um sem número de artistas populares, cujas alcunhas se transformaram em puro mito. De Pelé, Didi, Vavá, Garrincha e Zito, passando por Gilmar, Amarildo, Jair, Gerson, Rivelino, Tostão e Brito, sem se esquecer de Zico, Leivinha, Ademir, Dudu, uma penca de “Edus”, e os sempre atentos Zinho e Mazinho, os irmãos Bebeto e Romário e uma dupla de Ronaldinhos, que seguiram os passos de um Falcão, montes de Toninhos e Juninhos, e até um Sócrates, não o grego, mas o filósofo na versão tupiniquim, a odisseia tropical que pariu e patenteou aquilo que os gringos chamam de “jogo bonito”, mas que todos nós conhecemos apenas como o verdadeiro futebol arte, o jogo bem jogado, eternizado por duas academias esmeraldinas, que há muito se transformou na marca registrada da ingenuidade nacional.
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De uns tempos para cá, porém, além do futebol, um segundo tópico surpreendentemente se agregou a essas conversas aleatórias, travadas a esmo, em um desses lugares distantes onde a vida de caixeiro viajante tende a nos levar. De uns tempos para cá, pasme o leitor, parece que todo novo conhecido só se interessa em prosear sobre como que, em pouco mais de um quarto de século, a vibrante democracia brasileira conseguiu criar raízes, vingar e se impor, sem muito lero-lero e diz que me disse, para surpreender todo o globo, ao guiar o País, que antes era apenas aquele do futebol, a um período único de crescimento econômico e estabilidade política, nunca antes visto por esses lados do Atlântico Sul.

Curiosamente, nesse salto quântico de democratização, que nos removeu da legendária espiral de crises econômicas e institucionais, um componente essencial da nossa brasilidade declinou de respirar desses ventos de liberdade e transparência que singraram por todo País. Quem poderia supor que seria o futebol brasileiro o último baluarte da ditadura a se manter em pé, não obstante toda a sua origem popular. Ocorre que de fato o futebol só é popular e generoso na fonte da magia, que o sustenta e nos enfeitiça. Quando nos referimos ao “negócio futebol”, não é preciso doutorado ou muito proseado para rapidamente se concluir que, de fato, o futebol brasileiro de transparente e democrático não tem nada.

Daí a relevância que deve ser dada a movimentos, como aquele batizado há um ano como “Palmeiras Já” que hoje assola, em diferentes nomes e matizes, os cartolas da gloriosa Sociedade Esportiva Palmeiras. Formado organicamente por torcedores comuns, organizados apenas por meio das redes sociais e da não menos relevante “mídia Palestrina”, um aglomerado de blogs independentes, websites e até mesmo webrádios e webTVs especializados em divulgar notícias sobre o alviverde do Parque Antártica, esse movimento reivindica o direito de eleger diretamente o presidente do Palmeiras, quer por voto de associados do clube, quer em sua versão mais ambiciosa, pelo voto dos 15 milhões de torcedores alviverdes, espalhados por todo o País. A cada nova manifestação desse movimento, tem-se a sensação de que dessa vez os eternos cartolas que dominam esse clube tradicional (octacampeão brasileiro) estão com os seus dias contados.

Ao testemunhar o crescimento do Palmeiras, já que eu não posso me furtar a indagar se tal epidemia de democracia não deveria ser disseminada, não só para outros clubes tradicionais do futebol brasileiro que ainda teimam em barrar os mesmos torcedores que dão sustentação econômica, pela compra de ingressos, merchandising e pay-per-view e apoio emocional aos seus times do coração, mas também e, principalmente, para toda a poderosa Confederação Brasileira de Futebol, que há décadas determina os destinos do futebol nacional sem nem uma microgota de representatividade social. Pois, não nos enganemos, como negócio, o futebol brasileiro, além de prospectar o talento do povo brasileiro, pouco devolveu à sociedade civil que gerou todo esse talento.

Fica aqui lançado o desafio: que até a Copa de 2014 o Brasil ponha abaixo o último bastião de ditadura que nos assola, aquela que rege, oprime e domina o nosso futebol.

*Paulistano e palmeirense de nascença, é professor titular de Neurobiologia, codiretor do Centro de Neuroengenharia da Universidade Duke, na Carolina do Norte (EUA), e idealizador e diretor do Instituto Internacional de Neurociências Edmond e Lily Safra em Natal (RN). Faz parte do Conselho Editorial da Brasileiros


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