Todos os dias íamos para a escola com minha mãe. Eu e meu vizinho Pedro Zambrano, colega de classe. Ele não tinha mãe e o pai era um simpático pianista cubano que ensaiava todas às tardes. Sem saber, conheci Cole Porter, Gershwin e Bebo Valdés.
O Zambrano desde moleque tinha um sonho que começou com dona Maria de Lourdes, nossa professora de Geografia. Foi ela que nos apresentou o livro Volta ao Mundo em 80 Dias, de Julio Verne. Discutimos cada aspecto da viagem. Conhecemos o intrépido Phileas Fogg, o atrapalhado Passepartout e a encantadora princesa Aouda, indiana, salva da pira funeral de seu ex-marido. Aí, começou o sonho do Zambrano: dar a volta ao mundo com dona Maria de Lourdes. Ah, as pernas de dona Maria de Lourdes!
Mas, aquilo não foi nada perto do que estava por vir.
Poucos anos depois, assistimos ao Volta ao Mundo em 80 Dias com David Niven, Cantinflas e a inebriante Shirley MacLaine, com seu sorriso encantador. O Zambrano generalizou seu sonho: dar a volta ao mundo com uma mulher perfeita. Nada menos.
Com o tempo, naturalmente nos afastamos. Eu sabia que ele advogava, tinha lá suas namoradas e velejava em Ilhabela. Quando nos víamos, ele tornava ao assunto da volta ao mundo.
Há uns 15 anos, um amigo me contou que ele havia vendido tudo e partido para a Califórnia, onde comprou um veleiro. Foi o que soube. O resto só soube muito depois.
Sua primeira tentativa de volta ao mundo foi em San Diego, que é ponto de encontro e partida de velejadores que cruzam o Pacífico. Não deu em nada. Não conseguia se decidir por uma companheira. Ficou claro que deveria ser o contrario: começar uma viagem e então encontrar uma mulher. San Diego não é o lugar para isso.
Foi “solo” para Salvador e de lá partiu rumo Sul. Parando por aqui e por ali, mordiscando a costa, farejando praias, conhecendo gente.
Assim, tranquilo, experimentando o viajar, encontrou a tal mulher. Arrebatado, louco e apaixonado, ele a convidou para ir até Paraty. Ela aceitou e assim foram descendo por meses ensolarados até Paraty. Lá chegaram e lá ficaram por mais um ano. Em plena felicidade.
Certa noite, em que olhavam estrelas, ele falou de seu sonho da volta ao mundo. Casualmente, convidou-a para a esperada viagem. Ela demorou para responder e murmurou: Tá tão bom aqui. Olhando estrelas, maduro e sem pressa, considerou que de fato não poderia ficar melhor e disse: Tá bom mesmo. Foi simples assim, que seu sonho teve um fim. Nunca mais tocaram no assunto e por lá vivem, há muitos anos, em plena felicidade.
Foi lá mesmo, em Paraty, que eu soube disso tudo. Andando pelas ruas, ouvi alguém cantando I’ll Build a Stairway to Paradise. Uma beleza! Procurei descobrir de onde vinha a música e cheguei a um casarão com a placa Zambrano’s. Fui entrando no casarão, por meio às mesas brancas, gente, taças e flores. Junto ao gramado, meu amigo Pedro Zambrano cantava ao piano. Recebeu-me com um sorriso surpreso e ao fim da música nos abraçamos. Conversamos noite adentro. Quando a casa começou a esvaziar, a mulher dele surgiu lá de dentro. Ela?
Pode ser impressão minha, mas tinha as pernas de dona Maria de Lourdes e o rosto da Shirley McLaine. Lembrava um pouco minha mãe, é bem verdade.
*Engenheiro civil, professor titular da Escola Politécnica da USP.
Dedica-se também à Literatura.
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