Sobre A Privataria Tucana

Às páginas 325 e 326 do livro mais falado – e também mais silenciado – do ano, A Privataria Tucana, do jornalista Amaury Ribeiro Jr., aparecem duas menções a Nirlando Beirão. Nirlando Beirão, talvez você saiba, é este aqui que vos fala.

Fora o desconforto de, no índice onomástico, eu me ver lado a lado com o problemático Fernandinho Beira-Mar, o que tenho a falar é que, no que diz respeito a mim, o que Amaury narra é basicamente verdadeiro. Que fui convidado para me incorporar ao grupo de comunicação da campanha presidencial de Dilma Rousseff, em 2010, com atuação focada em São Paulo, mas não cheguei a aceitar. O episódio teve desdobramentos que, felizmente, já não me alcançaram.

Não sou filiado ao PT, nunca fui, nem me filiei ao PSDB quando, em 1990, funcionei (?) como porta-voz do então senador Mario Covas, candidato ao governo de São Paulo. A campanha foi um desastre, Covas nem chegou ao segundo turno (quem venceu foi Luiz Antonio Fleury Filho), mas tive o privilégio de conviver com uma personalidade de rica envergadura, com um político de incomum dignidade.

Enquanto consultava o travesseiro, dividido entre a tentação de viver o dia a dia de uma eleição presidencial e o beliscão da razão que prenunciava a campanha imunda como de fato foi, aconteceu o episódio definitivamente dissuasório. “Como o PT sabotou o PT” é o título do 16o e último capítulo de A Privataria Tucana. Amaury descreve a forma como uma facção de aloprados do PT, agindo como se estivesse em uma assembleia estudantil e não em uma difícil eleição presidencial, fez vazar acusações contra o grupo que até então parecia mais próximo da candidata: o do hoje ministro Fernando Pimentel e do publicitário Luiz Lanzetta.

Os aloprados – conta Amaury – se superaram: em busca de espaço na campanha, detonaram aqueles a quem, apesar de petistas, tinham como rivais, e sabem como? Passando informações, primeiro, para o colunista Diogo Mainardi, da Veja – hoje refugiado em Veneza, Itália – e, depois, para a própria Veja. Fogo amigo é uma expressão delicada para descrever o que aconteceu.

Dois capítulos de A Privataria Tucana, das páginas 309 a 340, versam sobre o imbróglio PT versus PT, mas as demais são pura nitroglicerina depositada no colo das principais lideranças do PSDB. A começar pelo ex-ministro e ex-governador José Serra e, por extensão ou, mais exatamente, por omissão do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. “O maior assalto ao patrimônio público brasileiro”, diz o subtítulo da bomba que a Geração Editorial teve a ousadia de detonar. Compreensivelmente, a grande imprensa, a bordo de sua imparcialidade de mão única, fingiu que não ouviu o petardo (grande imprensa no sentido de tamanho, não na qualidade do conteúdo).

Tão apressada em se comportar em relação ao governo Dilma, como aquele atirador que, no parque de diversões, tenta acertar, um a um, cada patinho do estande de tiro ao alvo, quer dizer, cada ministro de Estado, jornalões, televisões e mesmo aqueles colunistas que se notabilizam como profissionais do denuncismo unilateral calaram-se miseravelmente. Tinham diante de si novas, clamorosas, documentadíssimas revelações sobre o episódio da privatização das teles no governo FHC – lavagem de dinheiro em paraísos fiscais, propinas milionárias, enfim, falcatruas que, em outras circunstâncias, teriam arrepiado a adrenalina dos tais repórteres investigativos (sobre o silêncio, o vexame e o suicídio coletivo da mídia conservadora, leia O ano em que um livro desmascarou a imprensa, texto de Ricardo Kotscho, publicado em 19/12/2011).

Alguns exemplos do grau atual de honestidade da imprensa brasileira: o livro de Amaury foi lançado em uma sexta-feira, 9 de dezembro, junto com a edição semanal de Carta Capital, que divulgava as denúncias (“O Escândalo Serra” foi a manchete da revista) e trazia uma entrevista com o autor (“Serra tem medo do meu livro”, dizia o atual repórter da TV Record, mais de uma vez laureado com o Prêmio Esso, o Oscar do Jornalismo brasileiro).

No entanto, a Folha de S. Paulo esperou até a quinta-feira, 15, para, simulando uma reportagem, promover uma desajeitada, constrangida defesa de José Serra. Sem assinatura, contrariando o tal manual, indicando que se trata de obra coletiva. Ou, quem sabe, trabalho solitário – da instância superior. O Estadão deu no dia seguinte: a resposta do PSDB às acusações, que continuou sonegando ao leitor. O Globo esperou uma semana para convocar a pena imortal de Merval Pereira. Não para reportar, mas para escamotear.

Uma lambança de bilhões de dólares submersa em silêncio. Quando se trata da denúncia de um desclassificado acusando um ministro de Dilma de receber dinheiro vivo na garagem do Ministério, aí se liberam os fogos do fuzilamento moral – mesmo que depois a acusação se mostre uma farsa. O vazamento de uma prova do ENEN numa escola do Ceará virou “escândalo” (mais de cinco milhões de estudantes se beneficiam, com o ENEN, de não mais acordarem sobressaltados com o pesadelo do vestibular).

Mas a blogsfera, àquela altura, já bombava com o livro de Amaury. A censura que silenciou os grandões da imprensa não alcançou os internautas. O UOL, portal da Folha, levou seis dias para arranhar o assunto. Deve ser a isso que se chama a velocidade da internet.

Blindado pela mídia amiga, Serra é o protagonista do affair Privataria. Ele, sua filha, Verônica, que trafega com cheques milionários circulando pelo Caribe offshore, na perigosa famiglia Daniel Dantas-Verônica Dantas, e o genro dele, Alexandre Bourgeois, marido de Verônica. A única coisa que Serra disse do livro é que “é um lixo, um lixo, um lixo“. Mas há coisas que estão ali que talvez não interessem só ao deputado e ex-delegado Protógenes Queiroz (PC do B-SP), que colheu suficientes assinaturas para instaurar uma CPI da privataria. Companheiros de PSDB podem encontrar no livro-dossiê interessantes subsídios acerca da costumeira tática do cotovelaço, adotada pelo ex-ministro – contra inimigos, mas também contra supostos amigos.

Assim como documentou o embate PT versus PT, Amaury Ribeiro Jr. destampa um episódio fratricida que exprime bem os métodos políticos de José Serra. Ameaçado pelo crescimento de Aécio Neves junto às bases do PSDB, lá por 2008 e 2009, o renitente Serra decidiu botar um núcleo de arapongas espionando a vida particular do governador mineiro.

Serra pretendia usar o dossiê em uma possível contenda dentro do partido. Quem comandava a operação clandestina, conta Amaury, era Marcelo Itagiba, ex-delegado da Polícia Federal, posteriormente lotado no gabinete do então ministro da Saúde José Serra (Itagiba, eleito deputado federal pelo PSDB do Rio, em 2006, foi cassado pelo voto em 2010).

Aécio desistiu, Serra concorreu e perdeu, apesar da mãozinha dos diários associados e do Jornal Nacional – que, sem medida do ridículo, transformou o episódio da bolinha de papel na Baixada Fluminense em suspeita de traumatismo craniano.

Durante a campanha, Serra fez alarde a respeito de um suposto “dossiê” que envolveria Verônica. “Estão espionando minha filha”, esperneou. O dossiê era, na verdade, o livro de Amaury. Tática preventiva, mas manjada: acusar para não ser acusado, fazer escarcéu para despistar o foco da questão. A imprensa amiga aliou-se prontamente ao candidato antiDilma. Não quis saber se as denúncias podiam ou não ser verdadeiras. Amaury, para não se ver usado no arsenal da sangrenta campanha presidencial, decidiu adiar a publicação do livro, que virou hoje best-seller.

A imprensa, com as devidas exceções, faz um papelão. Mas o eleitor está ligado. Pesquisa do Datafolha, divulgada no dia 11 de dezembro, informa que a rejeição a José Serra pulou para 35% – no caso de ele vir a ser candidato a prefeito de São Paulo no ano que vem. Serra é, disparado, o mais rejeitado de todos os possíveis postulantes. É bom repetir: pesquisa do Datafolha. E isso antes das denúncias de Amaury terem se propagado com a força de escândalo nunca visto nas ondas das redes sociais.

Bem ao seu estilo vai-não vai, Serra estava fazendo suspense sobre disputar ou não a Prefeitura de São Paulo em 2012. É, na verdade, o sonho de consumo oculto do tucanato e de seus aliados – inclusive do esquivo prefeito Gilberto Kassab. Serra iria ficar ali na reserva para, enfim, se apresentar aos 45 minutos do segundo tempo como o salvador da pátria – o homem capaz de mais uma vez derrotar o PT na cidade. Depois de tudo o que está aí escrito, perante a apavorante perspectiva de um ou outro debate, aí sim, livre de qualquer censura, é natural pensar que Serra irá desistir.

Mas sendo ele quem é, pode ser até que tenha a desfaçatez de se candidatar. Pelo menos terá o voto da Soninha.

BOX
Trecho do capítulo 3, “Com o Martelo na Mão e uma Ideia na Cabeça”, do livro A Privataria Tucana

(…) Não é um riso aberto, caricatural, mas um sorriso quase íntimo, derramado para dentro. Observa-se um repuxar dos lábios, que expõem os dentes e esgarçam a pele das bochechas e do pescoço. É uma composição introspectiva, coadjuvada pelos olhos baixos, espreitando o martelo em sua descida vigorosa conduzido por sua mão direita. Quando se ouve o som da madeira contra a madeira, mais uma empresa pública foi vendida. A mão, a face e o sorriso pertencem a José Serra. A Light do Rio pertencia à Eletrobrás. (…)

O leilão, no dia 21 de maio de 1996, dava continuidade ao programa federal de desestatização. Fernando Henrique Cardoso deflagrara o programa em 1995. Estreou com a venda da Excelsa, a companhia de eletricidade do Espírito Santo. E a mão de Serra também brandiu o martelo.
Nenhum político, mesmo os que privatizaram ou pretendem privatizar, recebe de bom grado a fama de privatizador.
(…)

As lamúrias da revista Veja quanto à lentidão na venda das estatais receberam uma resposta rápida e reconfortante. O ministro José Serra, do Planejamento, anunciou “um ritmo mais veloz na venda das estatais” e encaixou as empresas de energia elétrica na lista das privatizáveis – prometeu e cumpriu, vibrando ele próprio o martelo Excelsa, no mesmo ano, e na Light, no ano seguinte. (…)


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