Sancionado pelo ex-presidente Lula em 2009, o Dia Nacional da Bossa Nova é celebrado desde 2010 em 25 de janeiro, que também marca o nascimento do maestro Tom Jobim. A data comemorativa soma forças para preservar a memória do maior produto cultural do País da segunda metade do século 20, símbolo de uma geração que ansiava por modernidade e legou novos horizontes musicais e comportamentais. É a lembrança desses dias áureos que vem à tona em dois lançamentos editoriais dedicados a personagens elementares para a construção da Bossa Nova, primeiro como gênero e depois como espetáculo.
Em Ho-Ba-La-Lá – À Procura de João Gilberto (Cia. das Letras, 184 páginas), o jornalista alemão Marc Fischer narra uma obsessiva caçada ao excêntrico patriarca da Bossa. Certo de que seria impossível entrevistar João, Fischer desembarcou no Rio de Janeiro munido de um centenário violão para, assim que encontrasse o baiano, pedir a ele que ao menos tocasse a canção eternizada em 1959, no clássico Chega de Saudade, que dá nome a seu livro.
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Já em A Bossa do Lobo (Editora Leya, 544 páginas) o leitor se depara com um catatau de quase 600 páginas dedicadas a retratar a vida frenética de Ronaldo Bôscoli, letrista de clássicos, como Lobo Bobo e Telefone, e produtor de dezenas de espetáculos ao lado do inseparável parceiro Luiz Carlos Miele. O livro atravessa a adolescência e a juventude de Bôscoli e persegue os últimos dias do também jornalista, morto em 1994, em decorrência de um câncer de próstata. Um amplo retrato de quase quatro décadas do País é o que salta aos olhos na biografia assinada pelo jornalista Denilson Monteiro, autor de Dez, Nota Dez! Eu Sou Carlos Imperial (sobre o controverso criador do Clube do Rock, programa de TV que revelou Roberto Carlos).
A caça ao vampiro e o lobo implacável
(…) “- João é do Mal?
– Tem um espírito muito forte, capaz de esmagar os outros. Quando ele entra num lugar, fica tudo em silêncio, como num caixão de defunto. João é um sedutor. Só vive de noite. Não me entenda mal: é um grande artista, grande mesmo, mas é também um…
– Vampiro?
– É.” (…)
O improvável diálogo acima é um dos pontos altos da entrevista feita por Marc Fischer com o compositor Roberto Menescal em busca do paradeiro e de histórias sobre João. A aspa alarmante de Menescal é narrada no capítulo O Sombrio Pressentimento do Barqueiro, que registra as recomendações do parceiro de Ronaldo Bôscoli em O Barquinho, para que Fischer tomasse muito cuidado com João. Menescal ainda revela que evita o contato com o amigo desde 1962. Mistérios tão hilários quanto esses impregnam dezenas de páginas da reportagem de Fischer e contribuem para a aumentar a mítica em torno de João Gilberto. Pouco depois, a cantora Joyce atesta que João tinha o dom de, literalmente, hipnotizar as pessoas e quase foi vítima dos poderes sobrenaturais do baiano quando o encontrou em um hotel em Nova York. Perturbada, arredou o pé de lá e também preferiu nunca mais encontrá-lo. Menescal encerra o papo com a triste lembrança de Normando, um grande violonista da turma inaugural da Bossa que, certa vez, encontrou João e passou a repetir seus trejeitos, excentricidades e falar com voz miúda. O “servo do vampiro” nunca mais agiu como antes, garante Menescal.
Dias antes de ver o livro publicado na Alemanha, em abril de 2010, o experiente repórter tirou a própria vida, aos 40 anos. Fischer havia desembarcado meses antes no Rio, atormentado pela dissolução de um relacionamento amoroso. Uma trágica ironia, mas o livro não deixa vestígios da provável melancolia que o consumia. É, sobretudo, um apaixonado testamento de alguém obcecado pela beleza das canções de João. Se Fischer não teve êxito em falar com o papa da Bossa ou tampouco o ouviu sussurrar seu pequeno mantra de amor, registrou deliciosas conversas com outras figuras míticas, como aquele que é tido por muitos como um “duplo” do baiano, o pianista João Donato (que ofereceu haxixe ao alemão), e o braço direito de João, o empresário Otávio Terceiro (“aprendiz do vampiro”, segundo Menescal).
Se o livro de Fischer tem o sabor de um romance policial que se lê em duas horas, A Bossa do Lobo também conta belas histórias, e tem informação de sobra. Para quem leu Chega de Saudade, lançado em 1990 por Ruy Castro, algumas passagens históricas podem soar redundantes, mas é justo dizer que a pesquisa de Denilson Monteiro é primorosa e seu texto flui com elegância. Apesar de avançar por décadas não retratadas no livro de Ruy Castro, a biografia de Bôscoli reconstitui com propriedade o cenário político, social e cultural que viu emergir a Bossa Nova. Estão lá as disputas entre Getulio e Carlos Lacerda, o nascimento da revista Manchete, o encontro de Vinicius de Moraes e o gênio precoce Tom Jobim, em Orfeu da Conceição, e tantos outros fatos históricos. Mas graças a seu fascinante personagem, um sujeito articulado, sedutor como poucos e observador implacável, A Bossa do Lobo é mais que um grande mosaico factual. Jornalista de grande reputação na crônica esportiva, respeitado até por Nelson Rodrigues, Bôscoli e o inseparável amigo Miele reinaram na noite carioca e na produção de shows do Beco das Garrafas, antro boêmio de pequenas boates de Copacabana que rendeu o bordão: “Dê-nos um elevador e nós lhe daremos um espetáculo“. Partindo desses verdadeiros “pocket shows“, Bôscoli empreendeu uma carreira de grandes êxitos que incluiu 24 anos de produção do espetáculo anual do rei Roberto Carlos.
Tornou-se mítico por também ter sido um galanteador contumaz. Teve inúmeras mulheres, três delas musas de sua geração. As cantoras Nara Leão, Maysa, com quem secretamente envolveu-se quando ainda era noivo de Nara, e Elis Regina, mãe do menino João Marcelo Bôscoli, hoje cantor e produtor como o pai. Apesar da aparente soberba e altivez, Bôscoli viveu décadas atormentado por crises de síndrome de pânico: o livro de Monteiro começa justamente quando o produtor, acompanhado do amigo Miele, em 1964, teve um surto em plena Rua Barata Ribeiro, em Copacabana, pressentindo que o mundo iria acabar. Para os fãs da Bossa Nova, as duas leituras jogam luz sobre o novo mundo inventado por ela e são imperdíveis.
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