Na classe média mundial

Comparados ao restante do mundo, quase todos os indicadores
colocam o Brasil em uma posição melhor do que estava há 20 anos.
O País conseguiu uma inserção no mundo global, manteve o capitalismo
e apresenta melhora dos índices sociais. Vem aí a Copa de 2014 e
a Olimpíada de 2016. Se não descobrirmos uma forma de apresentar
nossas virtudes dos últimos anos, vamos
vestir em nós mesmos a pecha de inconscientes tropicais

O Brasil está ocupando um novo lugar no mundo. No início da década de 1990, era a 15a economia do planeta. Atualmente é a 6a. Caso se cumpram as previsões para este ano, mesmo com o modesto crescimento de 3%, pode se tornar a 5a, superando a da França – para a qual as previsões indicam um crescimento próximo a zero.

Se a mudança fosse para pior, não faltariam explicações. Como se trata de uma melhora relativa, fica a dúvida para muita gente: é caso de passar da depressão de nação vira-lata para a euforia de país do futuro?

Existe um claro contraste entre o que acontece no mundo real da economia e as interpretações, os modos de pensar sobre o País. Há constância em um e ciclotimia em outros. Por isso, a prudência aconselha a lidar primeiro com o mundo real e depois, em separado, com as ideias para explicar o País.

O que aconteceu no mundo real? Em 1990, no governo Collor, o Brasil estava pagando ainda a conta dos desacertos do regime militar e ainda se engajou em uma abertura da economia para conviver com a globalização. Vivia uma combinação de sociedade rasgada pelas diferenças de renda com a perda daquela que parecia ser sua única proteção segura, o fechamento do mercado. A economia estava em recessão e a inflação era crônica.

Nesse cenário havia uma grande dispersão de alternativas para o futuro. Cada grupo tinha seu projeto, que ia da estatização completa ao estado nulo perante a economia. A unidade se construiu no processo de impedimento de Collor. Foi uma mudança secular no País: pela primeira vez na história a vontade da sociedade se impôs ao comandante do Estado em exercício do mandato.

O impeachment criou novas relações entre representantes no poder e representados. Ela se traduziu no fim do domínio completo das políticas de algibeira, dos lances mágicos, dos milagres prometidos a domicílio.

Para esclarecer: não se trata do fim das promessas de campanha, mas do início de uma série de administrações que foram efetivamente criando alguns processos que andaram na mesma direção durante os últimos 20 anos. Vamos à lista:

1. Distribuição de renda. A medida internacionalmente aceita para isso é o chamado Índice de Gini, que mede a diferença de riqueza entre os mais ricos e os mais pobres. Quanto mais próximo de 1, maior a diferença. Em 1992, ele era de 0,64. Começou a cair com constância ao longo dos anos seguintes, até chegar a 0,54, em 2009. A fração parece pequena, mas fica mais significativa se comparada, por exemplo, com os Estados Unidos. Em 1992, a diferença entre os índices dos dois países era de 0,19. Em 2009, havia caído para apenas 0,07.

2. Ricos e pobres em 1990. Os 10% mais ricos do País ganhavam 78 vezes mais dinheiro que os 10% mais pobres. Agora, a diferença caiu para 40 vezes. É gritante, mas quase empatada com a dos Estados Unidos.

3. Expectativa de vida. Era de 66 anos em 1991. Passou para 73 anos em 2009.

4. Mortalidade infantil. Era de 45,14 por mil em 1991. Caiu para 22,47 em 2009.

5. Trabalho infantil. Das crianças com idade entre 5 e 9 anos, 3,7% trabalhavam em 1991. Em 2009, eram 0,7%. Na faixa de 10 a 14 anos, trabalhavam 20,4% das crianças. Em 2009, eram 6,9%.

6. Escola básica. Em 1991, 23% das crianças com 7-10 anos de idade estavam fora da escola. Em 2009, eram apenas 2%. A grande fábrica nacional de analfabetos foi praticamente fechada.

7. Ensino superior. A porcentagem de jovens na faixa 18-24 anos na universidade dobrou, passando de 6,9% para 13,9% apenas no período 1998-2008.

8. Renda do trabalho. Subiu de uma média mensal de R$ 799 para R$ 1.111,10, com um aumento de 43,2% reais, no período 1993-2009.

9. Rede de água. Cobria 73% das residências em 1992. Passou para 85% em 2009.

10. Esgotos. Eram colhidos em 46% das residências, em 1992, e em 60% das residências em 2009.

11. Telefones. Existiam em apenas 19% das residências em 1992. Estavam em 84% delas em 2009.

12. Computadores. Em 2001, apenas 12% das residências tinham um. Em 2009, 35% possuíam o aparelho.

13. Internet. Em 2001, 8% das residências tinham pontos de acesso. Em 2009, eram 27,7%.

Mais uma vez: o conjunto não foi reunido para mostrar um paraíso, mas antes uma direção uniforme. Ele deixa claro que todos esses indicadores econômicos e sociais andaram em direção constante e convergente ao longo do período. O progresso da economia brasileira em relação a outras economias no mundo foi acompanhado de uma constante melhoria dos indicadores sociais internos.

Ao longo desse período, o poder foi ocupado por representantes de todos os matizes políticos – sem que nenhum deles alterasse significativamente a direção geral. Em outras palavras, a combinação de desenvolvimento econômico com melhoria de condições sociais foi, nesse período, um objetivo nacional, comum a todos. Não apenas como uma intenção, mas como tradução em resultados do trabalho no poder.

Futuro do presente
Amável leitor. Antes de você sacar todos os argumentos – aliás, plausíveis – que mostram a imensa distância entre o quadro brasileiro e indicadores de ponta, peço ainda um segundo de controle.

Comparados ao resto do mundo, quase todos os indicadores apontados acima colocam o Brasil em uma posição melhor que estava em 1991. Sim, caímos em uma espécie de classe média mundial. O País já está muito distante da pobreza da África subssahariana ou de países da América, como o Haiti, além de vários asiáticos. E os indicadores mesclam-se de maneira muito variada com os países emergentes e desenvolvidos de todo o mundo.

Mas esse retrato na classe média mostra apenas o dia de hoje. As projeções para os próximos 50 anos mostram que o Brasil pode conseguir um lugar econômico e social de relevo. Entre elas, podem ser consideradas as seguintes:

1. As projeções do FMI colocam a economia brasileira em 4o lugar no mundo no final da próxima década, ultrapassando a alemã. Apenas China, Estados Unidos e Japão seriam maiores que a economia brasileira em 2030. Segundo a instituição, por essa altura a economia brasileira talvez possa ser ultrapassada pela da Índia.

2. Caso não aconteçam mudanças radicais de rumo, a distribuição de renda brasileira vai ser melhor que aquela dos Estados Unidos já em 2015. Isso pode acontecer pela combinação entre melhoria do quadro brasileiro com a contínua deterioração da situação norte-americana. Hoje, as projeções são de que os 10% mais ricos do Brasil ganharão 35 vezes mais que os 10% mais pobres nesta data, enquanto os ricos terão renda 40 vezes maiores que os pobres nos Estados Unidos.

3. O Brasil conseguiu encontrar um lugar no mundo global, mantendo o comércio com todos os países. A China e a Europa são hoje os principais parceiros comerciais – e pouca gente se lembra dos tempos em que se dizia: “O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”.

4. O Mercosul é uma realidade incontestável. Criado justamente nesse período de melhoria das condições locais, o que parecia uma ideia utópica no início dos anos 1990, é hoje uma realidade de ligação física e empresarial sólida. Em vez de veias abertas na América Latina, surgiram estradas que trazem e levam pessoas. O Brasil tem um papel central nessa criação – e um papel econômico de relevo.

Novamente, esse quadro sintético é resultado de um conjunto de ações uniformes do governo brasileiro. A abertura da economia e a navegação em um quadro global não resultaram em nenhum desastre. Pelo contrário, foram fundamentais para que a posição relativa da economia local no mundo fosse ganhando um papel próprio.

Futuro do pretérito
Agora, chegamos a um ponto interessante. Aqueles que tiverem idade suficiente podem eventualmente tentar se lembrar dos modos como pensavam o Brasil 20 anos depois, em 1991.

Naqueles idos, a ideia de abrir a economia e mergulhar em um mercado global não era exatamente popular. Apenas liberais extremados tinham convicção nessa possibilidade. Havia muitos nacionalistas no centro político, que defendiam o mínimo de abertura possível. Na esquerda, a tese mais comum era a de que a riqueza seria transferida para o exterior e as condições sociais da população mais pobre iriam piorar ainda mais.

Ah, sim. Um dos argumentos mais plausíveis dessa época era aquele que partia da falta de condições de educação e saúde, que circulava em largo espectro ideológico. Por ele, nossos caboclos e mulatinhos seriam totalmente incapazes de concorrer com sadios alemães ou robustos japoneses. A ideia é tão plausível que continua fundamentando muita previsão de inviabilidade futura do País.

Claro, havia ainda em 1991 um forte clima de Guerra Fria. O muro de Berlim havia caído dois anos antes, mas as estruturas de conhecimento fundadas nessa divisão continuam funcionando na cabeça de muita gente.
O curioso é que nenhum desses modos de pensar o Brasil, vigentes em 1991 e em muitas formas sobreviventes até hoje, produziu um cenário de futuro que fosse até remotamente próximo da realidade de 2012. Em outras palavras, os profetas daquele tempo não parecem ter sido tão profetas assim.

O fato real, no entanto, foi que o Brasil, nos últimos 20 anos, conseguiu uma inserção no mundo global, manteve o capitalismo e conseguiu melhorar constantemente todos os indicadores sociais.

Como isso não bastasse, conseguiu a proeza de transformar uma economia desorganizada, com inflação crônica, recessões constantes e queda permanente no ranking das grandes economias mundiais noutra que vem mostrando organização, capacidade de crescer em meio a uma crise global.

Tentar explicar isso com as ferramentas mentais da Guerra Fria só gera paradoxos: o nacionalista Itamar Franco privatizou a estatal símbolo, a CSN; o social-democrata Fernando Henrique Cardoso governou fazendo aliança com os liberais; o socialista Luiz Inácio Lula da Silva largou seu programa símbolo, o Fome Zero, para trocá-lo pelo claramente social-democrata (não do partido desse nome, mas no sentido de programa estruturado no emprego das receitas do governo no mercado para gerar gasto social) Bolsa Família.

Portanto, vale um convite: explicar os conjuntos de fatos acima reunidos com ideias sobre o Brasil que tenham também o poder de indicar algo para os próximos 50 anos.

Vinte anos atrás, parecia insensato pensar o Brasil com outra forma que não uma sociedade atrasada e injusta. Hoje, parece pouco razoável manter esse ponto de partida – entre outros motivos, para não cair no complemento inevitável da euforia.

Como, por esse pensamento dicotômico, tudo está errado e pode ficar ainda pior, é necessário um componente mágico para ajustar as previsões catastróficas à realidade de progresso: um líder carismático, uma revolução, um milagre econômico.

Nada disso explica o Brasil dos últimos 20 anos. Houve trabalho sistemático, convergência de objetivos, unidade em sua perseguição. Houve virtudes que permitiram que as coisas fossem assim. Houve democracia.
Os modos de pensar o País, se não forem com base no conhecimento dessas virtudes, serão como no Brasil do passado: folclore.

Vem aí a Copa de 2014 e a Olimpíada de 2016. Dois momentos onde o mundo vai olhar para o Brasil com um lugar no mundo. Se não descobrirmos uma forma de apresentar nossas virtudes dos últimos 20 anos, vamos vestir em nós mesmos a pecha de inconscientes tropicais.

*Jorge Caldeira, doutor em Ciência Política pela FFLCH-USP, jornalista e escritor, autor de, entre outros, Noel Rosa: de Costas para o Mar (Brasiliense), Mauá: Empresário do Império (Cia. Das Letras) e História do Brasil com Empreendedores, lançado em 2010 pela Editora Mameluco, da qual é sócio-fundador. É membro do conselho editorial da Brasileiros.


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