Em abril de 1972, 68 homens e mulheres, enfurnados na imensa floresta às margens dos rios Araguaia e Tocantins, na região conhecida como Bico do Papagaio – na época um tapete verde com matas praticamente impenetráveis –, chamaram para a briga os grupamentos das Forças Armadas mais experientes em combate nas selvas. O conflito durou quase três anos e forçou Marinha, Aeronáutica e Exército a desencadear três campanhas militares, nas quais foram envolvidos, no total, um contingente próximo a 10 mil homens. O que seria uma guerra de guerrilha transformou-se em um dos maiores massacres da história do País, com a execução de ativistas que até as árvores tinham visto presos e confinados nas bases militares. Eliminado o foco, restaram desaparecidos 57 militantes do PC do B e 16 camponeses que aderiram ao movimento ao longo dos combates. Passados 40 anos do início dos combates, completados em 12 de abril, a Guerrilha do Araguaia mudou radicalmente a vida dos camponeses, faz parte da memória cultural e do imaginário popular da região, embalou a luta pela redemocratização, mas permanece uma ferida aberta, como uma história sem fim.

Há 30 anos investigando o conflito, a jornalista e pesquisadora Myrian Alves sustenta que o massacre foi um ato isolado de oficiais que pertenciam aos órgãos de informação do Exército, um caso à parte que divide também as Forças Armadas. Uma boa parte dos militares, para se livrar do estigma ou por causa do compromisso com os direitos humanos, deseja pleno esclarecimento do que lá ocorreu. “Quem comandou os horrores, como o Curió (ex-major Sebastião Rodrigues de Moura), sabe onde foram parar os corpos. O que vem ocorrendo é um contínuo processo de chantagem contra o estado brasileiro”, afirma Myrian Alves. A impotência das autoridades em resolver o caso contrasta com duas decisões, uma internacional, na OEA, e a outra, já transitada em julgado na Justiça Federal brasileira, determinando que o governo obrigue as Forças Armadas a reconstituir o cenário da guerra e apontar o destino dos guerrilheiros, que representam metade de todos os ativistas desaparecidos durante a ditadura militar.

O prolongamento da agonia dos familiares é a maior lacuna na política de direitos humanos de um governo chefiado por uma ex-militante da luta armada e uma demonstração de fraqueza do comando civil das Forças Armadas. A presidente Dilma Rousseff tem sua trajetória encravada nos anos de chumbo e o Ministério da Defesa, ao qual todos os militares estão subordinados, tem em seu primeiro escalão, como um irônico sinal dos tempos, um ex-guerrilheiro do Araguaia, José Genoino Neto. “Se apertar agora, a resposta sai”, diz o médico João Carlos Wisnesky, o Paulo Paquetá, e ex-quadro do PC do B Araguaia, que fugiu da área em 1973, época em que já não se fazia prisioneiros. Escaparam 19, a maioria presa até setembro de 1972, quando foi encerrada a primeira fase das operações militares. Depois, entre 1973 e 1975, foram desencadeadas duas grandes operações, a Sucuri – uma meticulosa operação de infiltração, que levantou a estrutura da guerrilha e, como a anaconda amazônica, asfixiou a guerrilha – e a Marajoara. Esta última terminou em uma caçada de rara procedência. Há relatos de moradores e oficiais das próprias Forças Armadas, apontando que pelo menos 23 guerrilheiros presos e interrogados por vários dias nas bases foram executados a sangue frio. Os oficiais cumpriam ordens. Suas ações contaram com uma ordem expressa e apoio incondicional do então chefe do Estado Maior das Armadas e ministro do Exército do governo Médici, general Orlando Geisel, mantido pelos generais Hugo Abreu e Milton Tavares, já no governo do general Ernesto Geisel.

Sobreviventes e familiares dos desaparecidos apostam nos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade como última esperança para um novo pacto em que os militares que estiveram à frente dos combates revelem o que sabem. Eles já não têm o que temer: os crimes estão prescritos e o Supremo Tribunal Federal, no seu costumeiro conservadorismo em matéria de política, tem dado sucessivos recados de que, abrigados sobre a vasta abrangência da Anistia de 1979, nenhum deles será punido.

Ainda assim, Curió vem desafiando sistematicamente o governo e a democracia, escondendo informações que estão em seu poder. “Coronel” amazônico, prefeito por dois mandatos de um município criado em sua homenagem, Curionópolis (PA), na Serra dos Carajás, ele é um horroroso contraponto à história deixada pelos rebeldes. Guerrilheiros, como a geóloga Dinalva Conceição Teixeira, a Dina, o médico João Carlos Haas Sobrinho, o Juca, e Osvaldo Orlando da Silva, o Osvaldão, ex-militar e engenheiro de mina, são lembrados na região pelos serviços de saúde e de apoio social aos moradores. Curió é símbolo da brutalidade. Permaneceu na região por dois motivos: os militares queriam manter o controle sobre as riquezas minerais da região e também porque sua presença em Brasília ou qualquer outro grande centro urbano poderia acelerar o desgaste da ditadura. Myrian Alves afirma que o terror imposto à região pelos oficiais chocou a linha branda da caserna e transformou Curió persona non grata em seu próprio ninho. “Ele e os demais oficiais que se envolveram diretamente no massacre não poderiam mais voltar aos quartéis. Não eram bem-vistos”, diz a jornalista.

Quatro anos depois de a guerrilha ser eliminada, Curió virou “prefeito” do garimpo de Serra Pelada, confirmando que por trás dos embates bélicos e ideológicos havia, sim, uma disputa discreta pela riqueza que tinha no subsolo do circuito da guerrilha, a cobiçada região do Carajás, de onde, a partir de 1980, saíram toneladas de ouro, diamante – é ainda a maior província mineral do mundo, hoje sob o controle da Vale. “Estávamos pisando em uma riqueza imensa. Lá, todos sabiam. Nunca entendi porque não exploramos isso. Quem descobriu tudo foi o Osvaldão”, revela Wisnesky. O PC do B jamais admitiu que a escolha do Araguaia tenha sido apenas por se tratar de uma região inóspita, mas tanto quando naquela época ou hoje em dia, nega ou se desvia do tema. Afinados com uma linha stalinista – em que tudo era segredo –, os dirigentes do movimento preferiam a pregação ideológica e a retórica política, o que resultou em uma desastrada tática: isolados, os guerrilheiros não conseguiram reagir e acabaram encurralados quando os militares cercaram a área e, com tropas especializadas em combates na selva, entraram definitivamente na mata. Muitos morreram em busca de alimento para saciar a fome.

Para o regime militar não havia segredo sobre a necessidade de controlar o minério. Mas os indícios de que a guerrilha também mirava o subsolo estão por toda a parte: gigante negro de 2 m de altura, simpático e bom de conversa, engenheiro de mina, campeão de boxe pelo Botafogo do Rio, ex-militar com “doutorado” em guerrilha em países do leste europeu, quando chegou à região, Osvaldão fez um mergulho na mineração. Misto de caçador de peles e garimpeiro dono de “barranco”, chegou a contratar trabalhadores rurais na mineração de ouro. Em 2008, quando a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça foi à região para indenizar e pedir desculpas aos camponeses, dois ex-guias do Exército, João Pereira da Silva e Abel Honorato de Jesus contaram que, antes de serem recrutados à força pelos militares, trabalharam para Osvaldão em um garimpo em Itamirim, hoje município de São João do Araguaia. Pereira é autor de uma versão segundo a qual o mais temido dos guerrilheiros era dono de uma concessão de lavra em uma área que atualmente pertence às grandes mineradoras. Micheas Gomes de Almeida, o Zezinho do Araguaia, o guia da guerrilha, treinado na China e sobrevivente que participou de todas as fases do conflito sem nunca ter sido preso, viu ouro em vários locais que percorreu com Osvaldão a Serra dos Carajás numa época em que ainda “era cabeluda” a superfície do garimpo de Serra Pelada. A possível exploração das riquezas minerais para sustentação da guerrilha, segundo ele, era assunto para o longo prazo. O foco do PC do B era a preparação militar para enfrentar o regime. Mas saber onde estavam pisando, todos sabiam.

Há outro indício forte: dois dos principais quadros do PC do B, Dina e seu marido, Antônio Teixeira, antes de se incorporarem ao Araguaia, ambos geólogos, eram funcionários do governo, lotados no Departamento Nacional de Pesquisa Mineral (DNPM), no Rio, condição que abria as portas de acesso às informações e a mapas sobre o potencial detectado no subsolo do circuito da guerrilha. Antes da eclosão do conflito, segundo Wisnesky, Dina fez levantamentos geológicos na região. Talvez por isso, moradores e garimpeiros ainda hoje se refiram a um determinado ponto, nas proximidades da Serra das Andorinhas, como o “kimberlito da Dina”, onde a guerrilheira, diz a lenda, teria descoberto uma rocha matriz de diamantes. Nos textos produzidos pelos guerrilheiros – um deles da lavra de Haas –, há também referências às “ricas jazidas da Serra Norte”, com críticas ao regime, que pretendia entregar as áreas a mineradoras multinacionais. A probabilidade de que alvarás de concessão de lavra estivessem em poder de guerrilheiros também foi usada como argumento judicial num processo em que ex-dirigentes de cooperativas de garimpeiros disputam há anos com grandes mineradoras em varas cíveis da Justiça Federal de Brasília o controle de Serra Pelada.

Outro argumento dos comunistas para justificar que a opção pela guerrilha rural foi forçada pelo golpe e pelo endurecimento do regime com a edição do AI-5, em 1968, não resiste à cronologia. O partido começou a se preparar militarmente logo depois do grande racha no PCB, em 1962. Meses antes de 31 de março de 1964, o dissidente PC do B, com a clara estratégia de se antecipar e prevendo que o fraco governo de João Goulart fazia água, já firmavam um intercâmbio com o PC chinês, cuja cláusula mais importante era um programa de treinamento na China.

Entre 1965 e 1966, militantes viajaram para a China e quadros de peso no partido, como Osvaldão e o economista Paulo Mendes Rodrigues, já se instalavam no Araguaia, comprando terras e preparando a estrutura para receber os militantes que o partido recrutava no movimento estudantil. O treinamento militar mais intenso é que seria desenvolvido mais tarde e intensificado dois anos antes da eclosão do conflito. As posses controladas pela guerrilha, cinco ou seis glebas, confiscadas, foram distribuídas por Curió a guias que ajudaram o Exército a localizar e matar guerrilheiros. Ao suspeitar que o PC do B optara pela guerrilha rural, o regime militar desencadeou em 1970 e 1971, duas grandes manobras militares na região. Era um aviso, mas os dirigentes da guerrilha praticamente ignoraram.

“Esperávamos a eclosão da luta para 1975 e 1976 e a estratégia era segurar os militares na região, até que as organizações das cidades se levantassem. O ataque de abril de 1972 abortou nossos planos. Fomos obrigados a encarar”, conta Micheas Gomes de Almeida, o Zezinho do Araguaia. Wisnesky afirma que o grande erro do comando da guerrilha foi ter deixado os militares entrarem na área sem oferecer resistência. “Deveríamos surpreender, mas fomos surpreendidos. Ao contrário do planejado, ficamos espremidos e não tomamos a iniciativa de fustigá-los. Nós é que conhecíamos a mata”, lembra. A falta de iniciativa dos ativistas foi fatal: as Forças Armadas já haviam percebido a consistência do movimento e não queriam surpresas, como ocorrera em Cuba poucos anos antes. Lá, a ditadura de Fulgêncio Batista começou a cair quando 20 homens que escaparam do naufrágio do navio Granma conseguiram se estabelecer na Ilha, sobrevivendo ainda a uma intensa fuzilaria operada pela Aeronáutica. No Araguaia havia três destacamentos organizados, com 68 integrantes – um terço deles, a espinha dorsal, formada pelos quadros comunistas mais preparados, como João Amazonas, Maurício Grabóis e Ângelo Arroyo.

Como a ordem era dar uma chance de rendição em um primeiro momento ou eliminar completamente o foco, os militares não se limitaram a prender, executar ou destruir os pontos de apoio dos guerrilheiros: eles aprisionaram, torturam, mataram, expulsaram e barbarizam também famílias inteiras de agricultores que só ficaram sabendo das verdadeiras intenções dos “paulistas” quando o conflito eclodiu. A tática militar era aterrorizar a população camponesa: dezenas de casas e roças foram queimadas, animais (como porcos, galinhas e bovinos) que a população mantinha para a subsistência foram mortos para dificultar a alimentação do “inimigo” quando o cerco fosse apertado.

O plano dos comunistas era criar uma zona liberada nos confins da Amazônia, atrair os militares para um longo e desgastante conflito e resistir até que as organizações da esquerda urbana despertassem para uma aliança destinada a derrubar um regime. Quatro décadas depois, o País respira liberdade, transformou um operário em fenômeno, elegeu uma ex-guerrilheira, mas, por outro lado, ainda convive com índices endêmicos de corrupção. “Conseguimos uma abertura política, mas ainda não consolidamos a democracia”, avalia Zezinho do Araguaia. “A localização dos desaparecidos é dificultado por um grupo da própria esquerda, que domina as comissões oficiais de direitos humanos e de anistia”, acusa Myrian Alves. A esquerda que pegou em armas está rachada. “O PC do B enterrou os vivos e esqueceu os mortos. O Araguaia ainda guarda grandes segredos que a Comissão da Verdade pode revelar”, diz Wisnesky. Se for mesmo para valer, além de apontar o destino dos desaparecidos, a comissão terá de espremer um furúnculo que espirrará pus à direita e à esquerda.


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