“O contra-ataque era muito pesado, com morteiros e RPG”, conta o fotógrafo Mauricio Lima, referindo-se ao lança granadas-foguete. “Na ofensiva, a maioria dos rebeldes mal sabia lidar com os fuzis e metralhadoras que carregava.” Com parte da cidade já capturada, o despreparo militar dos rebeldes ficou ainda mais evidente. Dois atiradores leais ao regime conseguiram segurar por dois dias um grupo de 50 insurgentes. “Foi em uma área comercial, parecida com a rua 25 de Março em São Paulo, só que com prédios mais baixos e a arquitetura padrão dos países árabes”, lembra-se o fotógrafo. “Os rebeldes atiravam a torto e a direito, mas não conseguiam descobrir de onde vinham os disparos dos dois atiradores.”
À medida que conquistavam terreno na cidade, os rebeldes confiscavam armas e munições em poder dos moradores de Sirte. Localizada na costa do Mediterrâneo, entre a capital Trípoli e a cidade de Benghazi, onde eclodiu a revolta, Sirte era a menina dos olhos do antigo regime. Nascido nos arredores, em pleno deserto, Kadafi investiu pesadamente na cidade durante o longo período em que comandou a Líbia. Não por acaso, contava com o apoio da maioria da população e dos líderes tribais daquela região. Atingido pela onda de revoltas, a conhecida Primavera Árabe, Kadafi chegou a declarar Sirte a capital do país, quando Trípoli foi capturada pelos rebeldes, em agosto de 2011.
Dois meses depois, Sirte ainda resistia, embora submetida a frequentes bombardeios. O último ataque aéreo, desfechado por forças da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), na manhã da quinta-feira 20 de outubro, atingiu o comboio no qual Kadafi tentava escapar do cerco rebelde. Assim como outros fotógrafos internacionais enviados para cobrir o conflito, Mauricio estava do lado oposto da cidade quando Kadafi foi capturado dentro de uma tubulação de drenagem onde tentou se esconder. Mauricio chegou ao local de carona em uma ambulância. Lá estava o motorista que ele havia contratado e com o qual combinara se encontrar ao meio-dia. “Você perdeu, Mauricio”, disse o motorista. “Além de chutar e socar, eu fotografei Kadafi pelo celular.”
Naquela altura, Kadafi já havia sido executado, em circunstâncias até hoje não totalmente esclarecidas. As fotos e os vídeos que anunciaram ao mundo a morte do ditador foram feitos por amadores empunhando celulares. O fotógrafo brasileiro lamenta ter perdido a cena, mas acha pior ainda não ter sido superado pela concorrência: “Se alguém tivesse feito o registro, seria uma imagem histórica.” Às 23h30 do mesmo dia, Mauricio fotografou o corpo de Mutassim Kadafi, filho e responsável pela segurança do ditador, na cidade de Misrata, a 250 km de Sirte. Como o pai, Mutassim tinha sido detido vivo, depois do ataque ao comboio. Em vídeo divulgado pelas redes sociais, ele chegou a ser exibido ferido, em poder dos rebeldes, fumando um cigarro e tomando água de uma garrafa plástica.
Quando fotografou o corpo de Mutassim estendido sobre jornais e um cobertor, Mauricio ficou impressionado com o clima de revanche. “As pessoas cuspiam e batiam no corpo com a sola do sapato, uma das piores ofensas que se pode fazer no mundo árabe”, lembra-se o fotógrafo. A retaliação continuou por mais quatro dias, período em que os corpos do pai e do filho ficaram expostos para visitação em uma câmara frigorífica de um entreposto de frutas e verduras de Misrata. “A população tinha os corpos como um troféu”, diz. “A fila para entrar na câmara frigorífica era enorme e incluía mulheres, famílias inteiras, que saíam de lá felizes.”
Aos 36 anos, Mauricio chegou à Líbia com a bagagem de quem já havia passado sete temporadas no Iraque e duas no Afeganistão. Em uma dessas temporadas, quando trabalhava para a agência de notícias France-Presse, ele permaneceu 65 dias no Afeganistão, os primeiros 35 engajado ao 3o Batalhão da 4a Divisão dos Marines, o Corpo de Fuzileiros Navais dos Estados Unidos. Na base militar de Marjah, no sul do Afeganistão, que se encontra ocupado por forças da OTAN desde 2001, o fotógrafo partilhava com os marines uma rotina que incluía patrulhas diárias a pé, com até seis horas de duração.
Pelas imagens que produziu no Afeganistão no final de 2010, Mauricio foi eleito pela revista americana Time como o melhor fotógrafo de agência internacional. Como se não bastasse, na ocasião a revista americana o comparou ao francês Henri Cartier-Bresson (1908-2004), um dos mais emblemáticos fotógrafos do século 20. “Sua abordagem e composição remetem ao ‘momento decisivo’ de Cartier-Bresson”, registrou a Time, em referência ao instante descrito por Cartier-Bresson no qual a cabeça, o olho e o coração estão alinhados.
Poucos meses depois da premiação, Mauricio tornou-se fotojornalista independente, atuando como colaborador internacional do The New York Times. A apreensão do jornal em relação à segurança durante a batalha de Sirte devia-se aos riscos inerentes ao trabalho em zona de conflito armado e ao temor de ter profissionais a seu serviço capturados por um dos lados do conflito. Em abril de 2011, dois repórteres e dois fotógrafos da publicação já haviam sido sequestrados por integrantes das forças de Kadafi. Só foram libertados, ilesos, depois de muita pressão internacional. Nos dois primeiros dias da cobertura da batalha de Sirte, quando os rebeldes ainda avançavam pela estrada, Mauricio estava acompanhado pelo repórter Kareem Fahim e pelo segurança australiano Shane Bell. “Como estava demorando muito para que os rebeldes tomassem a cidade, o repórter voltou com o segurança para Trípoli”, diz Mauricio. “Ele tinha uma série de notícias para serem apuradas e escritas na capital.”
Usando sempre um colete à prova de balas e um capacete pretos, sem inscrição nenhuma para não virar alvo fácil, o fotógrafo brasileiro continuou à espera da queda de Sirte. Costumava circular em companhia de outros três profissionais, dois americanos e um espanhol. “Nessas horas, a gente forma um grupo, como se fosse uma família, e vai junto até o final”, explica. Com os rebeldes, Mauricio não teve nenhum tipo de problema. Na realidade, eles adoravam ser fotografados. Isso fica evidente na imagem do combatente que exibe as armas e o saco de munição confiscados de moradores leais a Kadafi logo nos primeiros momentos da captura de Sirte. Enquanto outros rebeldes continuam a vasculhar o bairro residencial, o combatente faz pose de vencedor, usando uniforme e mocassins do adversário derrotado.
Para Mauricio, experiente na cobertura de territórios ocupados, mas sem a vivência em frentes de batalha, a captura de Sirte representou uma nova fase de trabalho. “O meu foco na Líbia eram as fotografias clássicas de guerra, inspiradas em Robert Capa”, disse, referindo-se ao fotógrafo húngaro nascido em 1913 e morto 41 anos depois, ao pisar em uma mina terrestre, na Guerra da Indochina. Um dos mais célebres fotógrafos de guerra do mundo, Capa registrou, entre outros conflitos, a Batalha da Normandia, no litoral francês, durante a Segunda Guerra Mundial. Interessado no registro de conflitos e de pessoas afetadas direta ou indiretamente por guerras, Mauricio se prepara agora para acompanhar as eleições na Líbia, previstas para junho. O curioso é que há apenas 14 anos, ele se encontrava dividido entre a culinária e a fotografia. Chegou até a fazer um estágio na confeitaria do restaurante Fasano, um dos mais sofisticados de São Paulo.
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