Foto Rogerio Cunha
Mario Haberfeld costuma acordar antes do sol. Tem pressa. É assim desde menino, tanto que a família logo percebeu a vocação dele para a velocidade. O pai, Roberto Haberfeld, passou ao filho mais do que o nome herdado da família austríaca, influenciou-o na atração por carros – Roberto é engenheiro mecânico, amigo do tricampeão do mundo de Fórmula 1 Nelson Piquet e frequentador de corridas.
A vontade de acelerar só dava trégua quando Mario dispunha sobre a mesa sua coleção de bichos de brinquedo. Imerso em florestas imaginárias, sonhava em correr como um guepardo ou em ter a agilidade de um urso. O garoto cresceu, tornou-se piloto, viajou o mundo e ficou bem perto de animais selvagens de verdade. Ele já esteve ao lado de cangurus, gorilas, tigres brancos, botos, aves de todas as espécies. Hoje, aos 35 anos e longe das pistas, corre atrás de onças-pintadas que vivem no Pantanal, no Mato Grosso do Sul.
Ainda menino, Mario convenceu o pai a fazer uma viagem à África. Com 11 anos, viu o amanhecer dourado da Tanzânia e viveu dias de aventura. Mas o destino ainda o empurrava para as pistas. Aos 12 anos, participava de provas de kart e sua competência ao volante o deixou com responsabilidade de adulto. Aos 13 anos, tornou-se profissional e campeão paulista da categoria.
O Brasil ficou pequeno para Mario. Quando tinha 16 anos, surgiu a oportunidade de correr na Inglaterra. Prudente, o pai colocou limites nos planos do filho, exigindo que ele começasse um curso superior. Um ano mais tarde, Mario era calouro do curso de engenharia mecânica na Universidade Mackenzie, em São Paulo. “Até hoje não sei por que escolhi engenharia. Não tinha nada a ver comigo. Acho que pensei que era algo mais próximo dos carros”, diz. Mas a presença na sala de aula não durou muito. Em pouco tempo, ele embarcou de mala, cuia e sonhos para a terra da rainha. Lá, assinou contrato com a Ford e logo estreou com brilho em pistas inglesas – em 1995, foi campeão na categoria. Dali em diante, sua vida passou na velocidade de um carro de corrida.
Sem freio
No ano seguinte, Mario, que já era vice-campeão mundial da Fórmula Ford, passou pela Renault europeia. Depois, exibiu braços fortes nos volantes da Fórmula 3 inglesa, da qual ganhou o título em 1998. Não demorou muito para surgir o convite: a Fórmula 1 abriu os asfaltos do mundo para ele. Mario permaneceu como piloto de testes da Stewart por um ano. Trocou de escuderia e emprestou seu talento por mais um tempo à MacLaren e, mais tarde, à Jordan.
Em cada pista, Mario pisava no acelerador com pressa. Não sabia esperar. Ensaiou durante anos a difícil arte de ir de zero a 300 km/h em apenas 8,6 segundos. Como ele se cansou de aguardar uma boa oportunidade em equipes maiores, aceitou a oferta de um amigo para um teste na Fórmula Indy. Ali, entendeu o tamanho dos riscos. Rasgava o asfalto a mais de 400 km/h.
Mas ele nunca se encolheu perante os desafios. Tinha uma vida nômade, como se a geografia não fosse fronteira. A cada semana, Mario estava em um lugar diferente e sempre que os motores davam uma brecha corria para o mato. Em terras australianas, queria ver os cangurus. Passando pelo Taiti, fazia um pit stop para observar tubarões. A ligação com o meio ambiente sempre foi inteira. Estava na alma e na cabeça.
Há pouco mais de dez anos, Mario reencontrou Ana, amiga antiga, que virou parceira e companheira para a vida. Nascida no interior de São Paulo, ela saiu do Brasil ainda jovem para estudar na Inglaterra. Calhou de o destino permitir que a amizade entre ela e Mario ganhasse outros temperos. Agora, eram dois a desbravar o mundo.
Entre 2003 e 2004, Mario e Ana viveram nos Estados Unidos. Apesar de o coração inquieto não aceitar estacionar, ele decidiu, um ano mais tarde, pisar no freio. “Foi o meu ano sabático”, afirma o ex-piloto, que tinha uma vida para pensar. Como precisava refletir, procurou refúgio na África. Encontrou respostas na sabedoria da natureza.
No meio da aridez africana, Mario conheceu Simon Bellingham, um guia turístico que realizava sonhos. Era só imaginar ver um animal selvagem, onde quer que fosse, e ele preparava a viagem. Assim, o piloto embarcou para Uganda para observar de perto gorilas, foi para a China assistir ao despertar de pandas e esteve sobre a neve do norte do Canadá acompanhando um desfile de ursos polares.
Em 2006, surgiu uma tentação. As pistas o chamaram de volta e Mario se tornou um nome para disputas longas: Mil Milhas de Interlagos, no Brasil, 24 Horas de Daytona, em solo americano. Dois anos depois, no entanto, quando os Estados Unidos assistiram à prosperidade partindo para outros continentes, a crise se instalou também no mundo automobilístico. Mario ainda participou de provas na Europa, longe de casa e da família.
Ele, então, parou para pensar. Dessa vez sem tanta pressa. Ele já havia passado pelas Fórmulas 1 e Indy, pelos carros de que mais gostava. Também colecionava dois capotamentos em provas e chegou a ver a morte de perto em um acidente na Fórmula 3.000. “Na saída de uma curva, um piloto jogou areia na pista e eu rodei ao passar. Levantou uma poeira enorme. Sem visibilidade, um terceiro carro bateu no meu a uns 200 km/h. O bico do carro perfurou minha perna esquerda. A equipe de salvamento não conseguia me tirar das ferragens. Passei dez dias em um hospital de Barcelona, na Espanha, até estar bem o suficiente para ser removido para o Brasil”, ele se lembra.
O episódio resultou na aposentadoria definitiva do capacete. Mais do que arrumar um emprego, Mario queria viver “o que vale a pena na vida”. Para ele, os animais selvagens. Ele fez uma lista com todos os bichos que queria ver de perto. Tornou-se dono da própria vida e do próprio tempo. “Não pude ir às festas que meus amigos iam quando éramos meninos, porque tinha de acordar cedo para treinar. Quando eles viajavam, eu disputava provas. Tinha contratos para cumprir. Agora, vivo o que não vivi antes.”
Mario partiu para o Zimbabwe e, durante cinco dias, percorreu longas distâncias em uma canoa para admirar um grupo de hipopótamos. Ansioso para tirar uma boa foto da turma, tentou pegar sua câmera e a canoa virou. De repente, Mario estava na água ao lado de animais bem ferozes (apesar da aparência, os hipopótamos são temidos por atacar seres humanos). “Eu não conseguia voltar para o barco. Acho que só escapei porque os bichos ficaram tão assustados quanto eu.” Seja como for, Mario tem certeza de que é menos perigoso estar perto de feras selvagens que de feras motorizadas.
O dono do tempo visitou projetos de preservação de espécies ameaçadas pelo mundo. Aprendeu com pesquisadores e estudou ecologia na prática. Decidiu que, a partir dali, seus dias seriam dedicados aos animais. Ele, então, se juntou a Marcelo Oliveira, empresário e amigo de infância, e a Simon, o guia sul-africano, e foram para o Pantanal a fim de verem uma onça-pintada. “Os moradores dizem que a onça é violenta, por isso não está em circo. Muitos avisaram que não poderíamos sair do carro porque ela poderia nos atacar”, conta.
Mas bastaram dois dias na Fazenda Caiman, refúgio ecológico onde a caça é proibida, para Mario avistar o maior felino das Américas. “Ela tinha acabado de comer um bezerro. Na noite seguinte, voltou ao mesmo local. Nós a seguimos por 72 horas. No final, ela se aproximou do nosso carro, deitou-se e dormiu sem se incomodar com a nossa presença”, garante Mario. Para Simon, prazer mesmo foi ver as ágeis capivaras pulando no rio. Com o encanto do estrangeiro, Mario aprendeu uma lição: “Nós, brasileiros, não valorizamos o que possuímos. Meu objetivo é mostrar que os animais têm valor econômico, valem mais mais vivos que mortos.” Possuído pelo privilégio de admirar a onça, Mario voltou à sede da fazenda. Reuniu os peões – os mesmos que tentaram desencorajá-lo – e levou a tropa para contemplar o animal. A onça-pintada é temida e cobiçada ao mesmo tempo. Por esses dois motivos, já está extinta em vários países. Nas encharcadas terras pantaneiras, a espécie ainda encontra espaço para viver e crescer.
A pecuária chegou há anos ao Pantanal e com ela o conflito entre produtores rurais e onças. Elas são acusadas de abater o gado no pasto, apesar de cobras e doenças matarem mais que os ataques. Nas savanas africanas, situação semelhante persistiu por séculos. Leopardos, guepardos e leões disputavam o gado com fazendeiros. Quando os safáris começaram a seduzir turistas, o dinheiro dos visitantes passou a compensar parte das perdas. Mario agora quer reproduzir no Brasil o conceito que deu certo no outro continente.
Simon e Marcelo permanecem ao lado de Mario nessa empreitada, e a eles juntou-se o biólogo Rogério Cunha, do Centro Nacional de Pesquisas e Conservação de Mamíferos Carnívoros, para a criação do Onçafari, um projeto que visa fomentar o turismo ecológico no Pantanal, preservando a onça-pintada. “É uma alternativa à conservação da onça-pintada no Pantanal. A proposta é melhorar a maneira como as comunidades locais e os pecuaristas encaram esses animais, reduzindo os conflitos entre eles. Essa é a única saída para preservar um dos últimos santuários da espécie”, explica o biólogo.
Para isso, Mario e equipe percorreram quilômetros entre terra e água no Pantanal de Miranda. Depois, prepararam armadilhas fotográficas. Ou seja, instalaram câmeras equipadas com sensores de movimento, que disparam automaticamente quando surge um animal. Com essa teconlogia, já entenderam que o movimento das onças por ali é intenso.
Eles pretendem escolher uma fêmea de comportamento menos arredio para ser momentaneamente capturada, só para receber um colar equipado com GPS, que permitirá aos pesquisadores acompanhar seu ritmo e localização. Com o tempo, esperam que a onça se acostume com a presença de câmeras e turistas. “Não vamos domesticá-la, queremos preservá-la em seu habitat. Nossa proposta é que os visitantes não a perturbem ou interfiram em sua rotina. Queremos apenas que ela não fuja assustada nem seja vista como uma terrível ameaça”, explica Mario. Para Rogério, as onças têm sorte em ter o ex-piloto como amigo. “Mario fez desse projeto um ideal de vida. Isso é nobre. Considero-o mais conservacionista que muitos com formação acadêmica na área.”
Mario parou de acelerar e competir. Parou para ver a onça correr livre pelas paisagens do Pantanal. “Se eu conseguir preservar uma onça, já realizo um sonho”, diz ele. Mas ainda tem pressa. Agora para salvar os animais.
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