O homem da tecnologia

O computador Colossus, construído sob a supervisão de Alan Turing e inspirado em sua máquina universal, quebrou o código nazista e virou o jogo na Segunda Guerra Mundial

No ano em que se comemora o centenário de nascimento do matemático inglês Alan Turing, o mundo celebra sua vida e obra. Alardeado como o grande acontecimento intelectual de 2012, The Alan Turing Year tem como ponto de partida as universidades de Cambridge (Inglaterra), Princeton (Estados Unidos) e demais instituições pelas quais Turing construiu sua carreira. A organização da série de debates e palestras – que será realizada de forma simultânea a partir de junho em centros acadêmicos de todo o globo, inclusive no Brasil – ficou a cargo do grupo de notáveis que formam o Turing Centenary Advisory Committee (TCAC), cujo presidente é John Dermot Turing, sobrinho de Alan. No Brasil, as atividades em torno do matemático acontecem na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em parceria com o Consulado Britânico e com direção dos professores Dante Barone e Marcelo Walter.

Embora mereça ser inscrito entre os principais artífices do salto tecnológico ocorrido no século 20 e tenha exercido papel decisivo para a vitória aliada durante a Segunda Guerra, Alan Turing teve seus méritos praticamente abafados durante décadas, em um dos mais cruéis casos de injustiça histórica de que se tem notícia. Por ter estado à frente de seu tempo, Turing pagou seu preço e foi condenado a uma existência de isolamento e perseguição, culminada com final trágico.

Matemático, lógico e criptógrafo, Turing estabeleceu ainda nos anos 1930 os fundamentos da computação digital. Do ábaco às máquinas de calcular de Charles Babbage, passando pelos engenhos de Schickard, Blaise Pascal e Leibniz, o computador teve vários precursores. Porém, é na máquina universal, descrita como instrumento de aferição das ideias propostas em sua tese matemática On Computable Numbers, que se encontra a raiz dos equipamentos que usamos hoje. Apenas imaginada no artigo, a descrição da “Máquina de Turing” foi base do protótipo de Colossus, esse sim, o primeiro computador moderno. Construído a pedido do governo sob a supervisão do matemático, Colossus foi instrumento decisivo a serviço da inteligência aliada na luta contra os países do Eixo.

Seu gênio inquieto, no entanto, caminhava a passos largos e, ainda que os primeiros computadores construídos fossem pouco mais que grandes máquinas de calcular, Turing já se questionava sobre o seu potencial no futuro. Em artigos científicos, formulou questões, ainda sem respostas, que antecipavam a ciência da inteligência artificial. Seu experimento imaginário, conhecido como Teste de Turing, tentava responder à pergunta que ainda hoje direciona a pesquisa de cientistas e tecnólogos da área: “Se uma máquina for avançada o suficiente para se passar por um ser humano em uma conversa, seria correto atribuir-lhe inteligência e conhecimento?”.

Os conceitos de Turing só agora começam a entrar em nova fase. Dar o próximo passo lógico no trabalho do matemático é o que motiva a pesquisa de Hava Siegelmann, especialista em redes neurais. Desde 1993, Hava vem desenvolvendo o sistema batizado Super-Turing, um computador com base em estímulo-resposta, capaz de armazenar dados e evoluir de forma próxima ao funcionamento do cérebro humano. A cientista acaba de conseguir os recursos para a construção de seu protótipo e afirma que, caso os resultados sejam positivos, entraremos na era das máquinas inteligentes, até aqui exclusividade do universo da ficção científica.

Graças aos computadores, as previsões quanto ao mapeamento do gene humano foram antecipadas em meio século, não é incorreto afirmar que não existe uma só área das ciências modernas na qual Turing não teve algum tipo de impacto. Em seus últimos anos de vida, o cientista se dedicava também à morfogênese, tentando desenvolver uma fórmula matemática que explicasse a vida tal qual Einstein explicou o funcionamento do universo.

O intelectual e a Branca de Neve
“Alan se interessava por números”, assim Ethel Sara Turing descreveu o filho durante o período pré-escolar. Filho de um agente do governo britânico, o menino de classe média que gostava de estudar os números nos postes de iluminação, nasceu em 23 de junho de 1912. Desde a infância, demonstrava inaptidão para o convívio social, tendência à introspecção e chamava atenção pela gagueira, o desleixo no vestir, o desrespeito às regras e por tratar com ironia colegas e professores.

Desde garoto, Turing foi obcecado por Branca de Neve e os Sete Anões. Segundo pessoas próximas, ele teria ficado fascinado com a adaptação do conto de fadas realizado pela Disney em desenho animado. Gostava, principalmente, da cena em que a bruxa má preparava a maçã envenenada em um caldeirão, cujas falas Turing costumava repetir de cor.

Dono de um comportamento excêntrico, Turing descobriu-se homossexual quando se apaixonou por um amigo na adolescência. O período também marca o despertar de seu interesse pela criptografia e a decisão de se especializar em matemática. Contemplado com uma bolsa para estudar no King’s College, em Cambridge, curso de graduação que ingressou em 1931, ele deu início a uma notável carreira acadêmica. Quando sua revolucionária tese On Computable Numbers foi publicada, em 1937, ele já havia cruzado o Atlântico para um doutorado em Princeton.

Dois anos depois, já de volta à Inglaterra, o potencial de suas ideias havia chamado a atenção do serviço de inteligência militar britânico. Embora não se considerasse um patriota, Turing tinha noção do perigo representado por Adolf Hitler e aceitou chefiar um projeto secreto, que tinha como missão decifrar o sistema Enigma, que tornava impossível aos aliados interceptar mensagens trocadas entre os alemães. Baseado em sua máquina universal e sob sua supervisão, foi construído o computador Colossus que, no auge de seu funcionamento, pôde quebrar o antes inquebrável sistema criptográfico alemão e antecipar os movimentos dos submarinos e tropas nazistas, oferecendo vantagem aos aliados e virando o jogo da guerra.

Alguns especialistas defendem que, sem a colaboração de Turing, a história poderia ter sido outra e o desembarque das tropas aliadas nas praias da Normandia poderia ter levado mais tempo e ao custo de muito mais vidas.

Com o fim da guerra, Turing gozou de certo prestígio. Colaborou com a construção do primeiro computador norte-americano, o famoso ENIAC, foi empossado vice-diretor do laboratório de computação da Universidade de Manchester e foi eleito para a Royal Society. Sua vida pessoal, no entanto, causava constrangimento a seus superiores e, devido a seu conhecimento sobre projetos secretos do governo, passou a ser visto como um perigo. Em 1952, Turing deu queixa contra um namorado que havia roubado seu apartamento em sua ausência, o que se provou um erro trágico. Ao invés de procurar pelo ladrão, as autoridades o processaram por indecência flagrante e homossexualismo, considerado crime na época.

Enquadrado na mesma lei que, décadas antes havia dado início ao martírio de Oscar Wilde – somente revogada em 1968 –, Turing foi obrigado a cumprir pena alternativa na forma de um tratamento à base de hormônios e eletrochoques que deveriam “curá-lo” de sua condição.

Em profunda depressão, destruído pelo tratamento, vendo seu nome excluído de projetos e negado seus pedidos de verba para pesquisas, a cena o inspirou no ritual de suicídio que marcou seu último ato. Em 7 de junho de 1954, Turing mordeu uma maçã como fazia todas as noites antes de se deitar. Naquela noite, no entanto, o fruto teria sido tratado com cianeto, a exemplo da bruxa má. Embora nunca confirmada por Steve Jobs, a maçã da Apple seria uma homenagem a Turing.

Nos anos que se seguiram, as autoridades trataram de abafar o caso e, com o passar do tempo, o nome Alan Turing foi praticamente apagado dos registros históricos. O resgate só aconteceu em meados dos anos 1980. Ainda assim, muitos que escreviam a seu respeito procuravam abafar detalhes de sua vida, como se a sexualidade de Turing representasse uma mancha em sua trajetória. Mas não há como negar a importância simbólica do cientista na luta contra a homofobia. Por outro lado, reduzi-lo a mártir de uma causa pode ser tão prejudicial à memória dele quanto reconhecer a importância do intelecto que compôs a obra, porém escondendo dados pessoais que definiram o homem. Talvez a melhor forma de celebrar Alan Turing seja como o homem que nos presenteou com o futuro e sua existência representa a importância do respeito aos direitos individuais dos seres humanos.


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