O poema não é cego

“Num me venha com cunversa mole não; eu num presto, sou deus, sou o diabo, sou Tiresi, deixo Omero no xinelo; sou rin, rin mermo, sou nego, cego, bofoti, tenho os oi aboticado, mai os juízo dos oio foro pra imaginação, mermo cum os dente distraído taivez  pruisso canto veusso e vosmece com seus oi fai veusso de segunda, inda diz que é  literato, num venha não…”
Delzo Silva, poeta de Queimadas, Paraíba, já falecido, em Pendenga (1977)

Vivi, na minha infância, as cantorias dos meus cegos do Nordeste, São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo e Santa Catarina, lugares que visitei e pude conversar com eles. Apreciei seu processo criador, sua poética e crítica social. Não é literatura fantástica, é a literatura do povo. Na de Cordel, a presença dos cegos é intensa.
Aderaldo F. de Araujo (http://bit.ly/LvjAvY) é um dos mais famosos do Ceará, Crato (1878-1967):

Canto para distrair
“Este meu curto poema:
Vou fugindo da miséria
Que é este o penoso tema,
Desta terra de Alencar,
Deste berço de Iracema.
(…)
Fugi com medo da seca,
Do pesadelo voraz
Que alarmou todo o sertão
Da cidade aos arraiais.”

José Oliveira (1883-1977) também (http://bit.ly/IPAM1e):
Estava cantando em Guiana
Na casa de um amigo
Quando uma mulher mundana
Chegou pra falar comigo
Toda cheia de desgosto
A lágrima banhando o rosto
E sei que poeta tu és
Por Deus escreva um poema
Relativo ao meu dilema
Na Porta dos Cabarés
Deixei a casa paterna
Com 15 anos de idade
(…)
Numa vida de prazer
Nunca pensei deu sofrer
Nas Porta dos Cabarés
Eu só andava no trato
(…)
A cadeia é o meu prédio
Aguardente é meu remédio
E eu sou mulher de mais de dez
Portanto minha insistência
Vou sofrer com paciência
Nas Porta dos Cabarés.

Há os donos de frases soltas:
“Os cego inauguraram o mundo na escuridão, só despolis vei a lui e aí a ilusão.”
Zé do Bigu (Paraíba, 1979)

“O cego não vê espei, mas vê o espei da lingua na carteira da solidão.”
Terto da Silva (Recife, 1982)

“Na cegueira fui nascido, no veusso afabetizado, na cantoria fui entronizado.”
Amaro da Silva (João Pessoa, 1987)

“Minha mãe deu me os peito, mas num deume a visão, mai como tudo e inlusão deu me a visão de poetar.”
Deodato de Maria (Fortaleza, 1988)

Em Campina Grande (PB), as atrizes-cantoras no ganzá Maria, Regina e Conceição, mais conhecidas como Maroca, Poroca e Indaiá,  e disseram: “A pessoa é para o que nasce”. Essa frase deu nome ao filme de Roberto Berliner (2003).

*É paraibano, mestre e doutor pela ECA-USP. Professor de Teoria Literária na Anhembi-Morumbi, professor colaborador da ECA-USP, Fundação Escola de Sociologia e Política-FESP, além de contista e poeta com livros publicados (paulo@brasileiros.com.br).


Comentários

2 respostas para “O poema não é cego”

  1. Avatar de claudia cruz
    claudia cruz

    Maravilha, como descendente de paraibanos sinto-me orgulhosa.
    Claudia

  2. Avatar de adriana rosa
    adriana rosa

    SEMPRE MUITO BOM!!!!!!!!!!!!!!!!!!
    PARABÉNS

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.