Um novo livro de Rimbaud

Imaginemos Rimbaud (1854-1891) na Biblioteca de Charleville: ele escrutina as estantes. Lê tratados de alquimia, livros socialistas e manuais de magia. Esse mesmo jovem, depois de viver a Comuna de Paris, quando os operários assumiram brevemente o poder, vai a Londres, vive em uma caverna, aprende alemão e tem as experiências mais “escandalosas” com Paul Verlaine (1844-1896). Só para, depois de tudo, abandonar os livros para viver a vida nos desertos africanos.

Em seu novo livro, Rimbaud etc. – História e Poesia, Editora Hucitec, Marcos Silva apresenta uma linha de interpretação que não desdenha a materialidade estética do verso, a sonoridade, o ritmo, a postura e a linguagem: enfim, a modernidade desvendada na própria escrita radical de Rimbaud e Verlaine. No entanto, na contramão dos meramente “formalistas” e dos conteudistas que faziam a crítica biográfica oitocentista, Silva não isola os poetas do seu contexto histórico e linguístico.

Rimbaud, para ele, demonstra o poder das artes perante outros poderes, mas nem assim se isola. Por isso, as linhas da história estão lá, em uma poesia iconoclasta que derrota o burguês na própria imaginação verbal, num momento em que a classe operária parisiense foi derrotada na Comuna de Paris.

Dessa maneira, o livro tece os fios quase invisíveis das referências históricas que animam autores tão diferentes e desconhecidos entre si, como Marx, Nietzsche, Rimbaud e Freud.

No poema O Barco Bêbado, Rimbaud conjumina referências da literatura ocidental (o Ulisses da Odisséia e a narrativa bíblica de Noé) com outras menos prestigiadas, tais como almanaques e a literatura de aventuras. Se Rimbaud e Verlaine instauram a “beleza no ato da escrita”, é possível encontrar em um soneto escatológico ou rudemente realista maior prazer estético do que no livro L’Idole, de Albert Mérat. Soneto do Olho do Cu, de Verlaine e Rimbaud (leia na página 39), parodiava os sonetos dos olhos, da boca, dos dentes, da testa, dos cabelos, do nariz, da orelha, dos seios, dos braços, das mãos, do ventre, da perna, do pé, da nuca e das espáduas que Mérat escreveu para uma mulher-símbolo.

A tradução de Marcos Silva usa contrações, mas seduz exatamente pela sonoridade. As traduções de sa ventouse (por simplesmente “ventosa”) e a de jalouse (por “invejosa” e não “enciumada”) seguem exigências rímicas e rítmicas. Ora, a ventosa é mais que uma abertura (tradução possível). É um órgão que se aferra ao corpo para sorvê-lo.

É que em uma era de dessacralização dos ídolos, a poesia pode alcançar outras zonas do corpo: púbis, nádegas, vagina, ânus. Tais regiões do prazer erótico são interditadas pelos silêncios de Mérat. Doravante, sua mulher “feita de papel e palavras”, deverá conter sabores, odores e ser apalpada e sorvida. No entanto, Marcos não condena Mérat e não exige dele que seja Rimbaud. Mérat vai além daquela materialidade onde o corpo não se esgota, por isso seus versos têm momentos de delicadeza e merecem ser lidos. Mas o poeta encontra certa dificuldade para se saciar na própria matéria e sua poesia se nos apresenta convencional. A mulher de Mérat é silenciosa, passiva, marmórea.

*Professor de História Contemporânea na Universidade de São Paulo.


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