Mais uma vez durante este verão europeu, a pacata cidade de Kassel, de aproximadamente 200 mil habitantes, se depara com a peregrinação incisiva dos seguidores da arte. A cada cinco anos acontece a Documenta, a mostra de arte contemporânea mais respeitada no mundo. Por esse motivo, a cidade atende oficialmente, desde 1999, pelo pseudônimo “Cidade da Documenta”.
Seus primórdios remetem ao ano de 1955, tendo como palco uma Alemanha devastada pelo rastro do sistema nazista. A própria Documenta foi criada como uma reação ao devastamento cultural do país imposto pelo sistema ditatorial, banindo da realidade nacional várias vertentes culturais, como a modernidade. A Documenta haveria de preservar as tendências artísticas e reposicionar a Alemanha no circuito internacional cultural. Arnold Bode, professor de arte e design proveniente de Kassel, foi o idealizador do evento no contexto do Festival Nacional de Paisagismo, atraindo já na época 130 mil visitantes.
As primeiras Documentas aconteceram em espaços públicos, nos jardins da cidade e em ruínas dos prédios históricos, como é o caso do Fridericianum (finalizado em 1779 e concebido como um dos primeiros museus do continente europeu e atua até hoje como sede principal da exposição). Neste ano, a Documenta em sua 13ª edição prima por utilizar o maior número de espaços espalhados pela cidade como palco para as obras selecionadas. Esse panorama não poderia ser mais eclético, incluindo os museus usuais, hotéis, a secretaria de finanças da cidade, um bunker, um campo de concentração, cinema, hospital desativado, escritório, habitações privadas, casas de baile, entre outros. Muitos desses locais surgiram no período pós-guerra e hoje se encontram desfigurados de sua concepção original. A maioria foi idealizada pelos irmãos Arnold e Paul Bode, que muito influenciaram a reconstrução da cidade na década de 1950.
Na Hauptbahnhof, a antiga estação de trem
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A reutilização desses locais hoje expositivos, considerando o novo conteúdo que eles abrigam, seria em si uma revisão geral sobre a Alemanha e sua evolução desse o período pós-guerra? Seria essa uma revisão sobre a evolução urbanística da cidade de Kassel, semelhante a de tantas outras da Alemanha? Seria uma revisão da própria Documenta em si? Os tentáculos dessa exposição se estendem ainda até Kabul, no Afeganistão, Alexandria, no Egito, e Banff, no Canadá, cidades que abrigam mostras da Documenta e em sua maioria com obras diretamente interligadas às expostas em Kassel. Por cem longos dias e algumas noites – considerando a programação que se estende noite adentro, além da distinção do fuso horário das cidades-sedes da mostra – foi acompanhada atentamente a evolução dessa programação, graças aos recursos tecnológicos atuais.
Na Documenta-Halle
Carolyn Christov-Bakargiev foi nomeada por um júri seleto como curadora-chefe desta Documenta. De nacionalidade americana e com raízes búlgaro-italiana, ela contabilizou em seus 55 anos de idade um percurso internacional, iniciado como curadora do PS1, em Nova York, seguido do Museu de Arte Contemporânea de Turim, entre 2002 e 2008, além de ter sido curadora-chefe da Bienal de Sidney, em 2008, chamou a atenção para assumir o desafio como chefe da Documenta 13.
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Sem um conceito pré-elaborado e mantendo em sigilo absoluto a lista de artistas participantes até três semanas antes da abertura da mostra (por casualidade, a lista vazou para a imprensa alemã, desfazendo a ideia inicial de divulgação dos participantes somente na conferência de imprensa), Carolyn criou um mito e muita controvérsia durante seu percurso preparatório da
Na Neue Galerie
Documenta. Seu time foi composto por nove gerentes atuando como conselheiros, provenientes de áreas distintas, pois seu interesse não foi focado somente nas artes plásticas, mas também na Filosofia, Biologia, Física, Antropologia, Política, Arquitetura e Economia. Esse time interdisciplinar uniu obras de 150 artistas de 55 países, não sendo eles necessariamente estrelas de maior grandeza no cenário contemporâneo.
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Entre os artistas convidados, há a participação de quatro artistas brasileiras: Renata Lucas, com obras no Fridericianum e no jardim a sua frente; Maria Thereza Alves, expondo no Ottoneum; Anna Maria Maiolino, em uma casa no Parque Karlsaue; e Maria Martins, na Neue Galerie. Eis uma escolha seleta que abrange períodos e linguagens distintas, lidando com temas introspectivos, de caráter social, pessoal ou político-geográfico.
No Karl Saue, o parque
Como a mostra está pulverizada pela cidade, os espaços são utilizados de forma generosa, a exemplo da participação de Ryan Gander, que criou em duas nobres salas simétricas, na entrada do Fridericianum, uma instalação sensorial onde o visitante se depara com uma leve brisa a percorrer os espaços vazios. Essa ausência física de obras nos traz à mente a presença marcante de obras inesquecíveis de outrora aí expostas, a exemplo da instalação impactante de Doris Salcedo na Documenta 11, dez anos atrás.
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Uma das grandes presenças desta Documenta é a participação da dupla Janet Cardiff & George Bures Miller, destacando um videoguide na estação de trem Hauptbahnhof e uma instalação sonora no Karlsaue Park. Ambos são locais públicos, de caráter urbano e campestre, e abrigam obras envolventes para captar a presença dos visitantes, tornando-os protagonistas das obras sensoriais, envolvidos na trama repleta de diálogos e efeitos de som e a dominarem vivamente o cérebro do ativo público disposto a desbravar a mostra em busca de experiências inusitadas como essas.
A própria Documenta concebeu o maior concorrente para a mostra exposta em Kassel com um programa paralelo de debates, discussões e palestras a acontecer durante seus cem dias de existência, com a presença de porta-vozes das diversas áreas e artistas participantes. A prévia de dois dias para o público especializado atraiu inúmeros interessados em acompanhar o evento, que atuam como multiplicadores do contexto exposto. A expectativa é de que, ao todo, 750 mil pessoas de todo o mundo visitem a Documenta, fazendo jus ao investimento de 24,6 milhões de euros, 127 vezes maior que o custo da sua primeira edição em 1955.
Aqui e lá, a multiplicidade de sentidos de Anna Maria Maiolino
A artista brasileira Anna Maria Maiolino entende bem o que significa pertencer a diversos lugares. Nasceu em Scalea, na Itália, em 1942. Imigrou para a Venezuela em 1954 e mudou-se para o Brasil em 1960.
Talvez por isso tenha conseguido responder tão exemplar e descontraidamente às propostas curatoriais da Documenta (13), que a escolheu, inicialmente, para apresentar uma instalação de argila da sua série Terra Modelada.
Ocupando o espaço “interno” e “externo”, de uma típica casa alemã de 1947, no parque Karlsaue, em Kassel, onde moraram os irmãos Grimm e onde moravam os zeladores do local, trabalhou com algumas das questões motivadoras desta Documenta: como sobreviver a hecatombes sociais, políticas, econômicas, ambientais e éticas? Como viver em um mundo globalizado, sincronizado e como, de alguma forma, sair dessa sincronia.
Ganhadora do Prêmio MASP Mercedes-Benz do Brasil de Artes Visuais 2012, conhecida por seu trabalho multifacético, que utiliza diversos meios – instalações, esculturas, desenhos, filmes, fotografias, sons –, Maiolino “tomou” o espaço para experimentar, como ela mesma diz: “A multiplicidade de sentimentos e sentidos”.
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A instalação Here&There (Aqui&Lá) acontece em cinco diferentes espaços: O Térreo – Lugar do Ente Operante, O Porão – Lugar do Corpo Ausente, O Sótão – Lugar da Memória Encontrada, O Fora da Casa – Lugar da Escuta no Ar e A Escrita – Lugar de Recolha do Signo Perdido.
No primeiro pavimento, como Maiolino se refere na autoentrevista, de julho de 2011, o que está presente é: “O sujeito do trabalho, o obsessivo acúmulo de formas básicas produzidas em argila, modeladas pelas ações primeiras das mãos. À medida do homem, iguais e singulares, repetição e diferença. Entropia, registro de fadiga e de energia investida aguardam o espectador e é, então, que o sujeito – o ente operante – atinge a máxima potência. O trabalho – das mãos que fazem – é o do mesmo esforço que, através dos tempos, vem edificando a cultura. Ele expressa a “paciência sagrada” da repetição em qualquer fase. A presença da prazerosa fadiga conspira contra a produção massificante e mercantilista do trabalho da nossa sociedade industrial e de consumo”.
No porão, local profundo da casa, seu alicerce, ela evoca o corpo ausente. Na escuridão e no vazio, Maiolino recita um poema escrito por ela, Eu Sou Eu, que aparece traduzido em inglês e alemão em dois monitores em uma das paredes. O poema também foi publicado e distribuído por ocasião da Documenta em Kassel, como iniciativa da Galeria Millan.
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