Bahia de todos os mistérios

Bahia é um mistério e boa parte dele deve estar escondida em Itapuã. Eternizada por sua areia e seus coqueiros em Saudade de Itapuã, de Dorival Caymmi, o subdistrito de Salvador também é conhecido pela Lagoa de Abaeté que, ainda segundo Caymmi, carrega a maldição de ser mal-assombrada: “Muita gente tem morrido nas águas dessa lagoa, afogada, desaparecida na lama”, conta o músico em seu livro Cancioneiro da Bahia. Já o poeta Vinicius de Moraes via o cartão-postal baiano de forma diferente: como um belo lugar para vadiar e sentir preguiça no corpo em um “mar que não tem tamanho”, como ficou registrado com Toquinho na canção Tarde em Itapuã.

Também foi nessa terra onde tudo começou para o músico paulista Rodrigo Campos. O cantor, violonista e cavaquinista de São Mateus não é um Lugar Assim tão Longe (2009) resolveu passar dez dias em uma casa anexada ao Hotel Mar Brasil, que já foi propriedade de Vinicius de Moraes, após um período de crise existencial. Lá nasceram os primeiros esboços de Bahia Fantástica, que marca uma ruptura em relação ao primeiro disco solo. Diferentemente de São Mateus – sintetizado pelos perfis de personagens com quem o músico conviveu por mais de 20 anos em uma levada de samba –, o novo disco reflete a entropia de um artista que não tem afinidade com as pessoas do lugar retratado. Nesse trabalho, ele deixou o cavaquinho de canto para empunhar violão e guitarra com a banda formada pelos também paulistas Kiko Dinucci (guitarra), Marcelo Cabral (contrabaixo acústico e elétrico), Thiago França (sax alto e soprano, flauta e EWI, um instrumento eletrônico de sopro), Mauricio Fleury (teclados) e Maurício Takara (bateria), explorando terrenos que vão da bossa nova ao afrobeat.

Com essa turma, o disco funcionaria melhor tocado ao vivo,  ideia que surgiu por influência do parceiro musical Romulo Fróes: “Ele teve essa experiência comigo em Um Labirinto em Cada Pé (2011) e gostou muito, pois foi feito de um jeito totalmente diferente de quando ele gravou São Mateus”. É por esse motivo que Rodrigo credita toda a banda pela produção do álbum, que ainda teve a engenharia sonora de Gustavo Lenza e a direção artístico-musical coassinada por Romulo.

Além de todo o misticismo da terra de Caetano e Gil, Rodrigo Campos agregou ao disco o suingue norte-americano do soul e funk, que vem de Al Green, Curtis Mayfield e Funkadelic. “Foi algo que persegui, porque estou falando da morte de maneira soul, alma”, confessa o músico. “A morte está no disco em um sentido metafórico, como uma reflexão sobre a vida, o fim e a incompreensão sobre o que vai acontecer depois.”

Mas não espere um tom sepulcral sobre o tema. Na canção Princesa do Mar, a sonoridade é festiva na crônica de uma garota que “entra na maré bruta/pra virar na maré mansa” – ou seja, a garota morreu afogada e foi direto aos colos de Iemanjá. Sete Vela tem violinos lúgubres de Buda Nascimento, mas flerta com o samba ao retratar os momentos de agonia de um assaltante que, na dificuldade de roubar um carro, se lembra da história de um companheiro que “rodou geral”, depois de completar “18 carnavais”. Aninha, então, é uma resignação. Com efeitos de teclados que simulam um aparelho cardíaco, Rodrigo canta os minutos finais da personagem, até que o tempo acaba e a banda entra em uma jam esfuziante, levando o ouvinte a um transe imagético da passagem da vida para a morte: “Ana vai morrer/não tem problema”.

O flerte com o desconhecido e misterioso naturalmente alterou sua forma de composição. As músicas estão mais curtas e, ao mesmo tempo, mais complexas. Isso porque Rodrigo compartilha com os ouvintes o seu desconhecimento perante os personagens e as situações que eles vivenciam. Em Morte na Bahia, composição sua cantada na voz de Luísa Maita (mulher de Rodrigo), a canção se resume aos seguintes versos: “Morte na Bahia/Morre a flor/Uma canção nasceu/Uma canção de amor/Mas meu coração não entendeu”. Até os personagens são cheios de dúvidas: “Capitão da Marinha Mercante/General não sabia dizer/A razão de alcunha elegante/Capitão General sem por quê”, como canta em General Geral. “Ele se apoia nos personagens, mas teve de inventar biografias”, define Romulo. “As histórias levaram a música dele para outro lugar. O poder de síntese ficou mais claro e mais forte, abrindo sua imaginação para um mundo maior do que se os personagens tivessem sido apresentados por completo.”

Além de Buda Nascimento e Luísa, participam de Bahia Fantástica o cantor Criolo, o programador Gui Amabis, o violista Renato Rossi e um trio que vai fazer você mudar os sentidos: o percussionista Mauricio Badé, o guitarrista Guilherme Held e a cantora Juçara Marçal. O motivo? Ouça Jardim Japão, escrita por Rodrigo Campos em parceria com Vicente Barreto: Badé dá agilidade à canção, que fala da correria de dois bandidos que tomaram uma boca de tráfico de drogas. O bicho começa a pegar a partir do momento que Held simula um ambiente flamejante com riffs intensos, enquanto Juçara, que assume os vocais, embeleza com sua limpidez e serenidade. Quando Juçara cantou essa música no show de lançamento do disco, no SESC Vila Mariana (São Paulo), os aplausos foram intermitentes. “Ela me fez borrar a maquiagem”, chegou a comentar a jornalista Lorena Calábria. “É uma antidiva: canta bem, não faz pose e emociona.”

Seja como um preâmbulo ou um meio de “se libertar de coisas que estavam associadas a você e que você já não segue mais”, como teoriza Romulo, a morte tem muitos significados em Bahia Fantástica. Para Rodrigo Campos, assim como era para Jorge Amado, a Bahia continua sendo um indecifrável estado de espírito: “A Bahia em si é um mistério. Agora, essa Bahia Fantástica é ainda mais misteriosa”.


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