Lições do passado e olho no futuro

O caos parece ser a tônica na vida das grandes cidades e o soterramento da sensibilidade de seus habitantes uma de suas consequências. Nesse cenário, retomar o sentido do pensar e fazer arquitetura nunca se mostrou tão urgente. Como uma resposta a essa conjuntura, o livro Arquitetura Conversável, de Marcelo Ferraz, trata de recolocar a produção da arquitetura na direção do homem. Se por um lado o exercício do projeto “é também se indignar com a realidade, ter vontade de mudá-la e melhorá-la”, segundo ele, projetar é, ao mesmo tempo, “exercitar a infinita possibilidade de abrir caminhos”.  Munido da dialética do sim e não, antimaniqueísta e pautado pela rejeição de dogmas, Marcelo oferece um ponto de vista surpreendente – porque libertador – sobre questões em tela no jogo dinâmico da construção de nossas cidades.

Lançado em 2011, o livro reúne cerca de 30 artigos e entrevistas – a maioria dos anos 2000 – organizados em cinco temas predominantes: arquiteto, cidade, espaços culturais, patrimônio e conversas. Com fio condutor da experiência de mais de 30 anos de trabalho de Marcelo Ferraz, seja em seu escritório – Brasil Arquitetura, onde desenvolve projetos em parceria com Francisco Fanucci –, seja na experiência de quase 15 anos de trabalho com Lina Bo Bardi, os textos abordam questões como sustentabilidade, acessibilidade e reurbanização de favelas até reflexões de como se caracterizaria uma arquitetura propriamente brasileira e as relações com o passado e a memória na realização de novos projetos. Embora dividido em temas, os assuntos não são estanques, ao contrário, se interpenetram e se complementam, ao passo que avançando na leitura vai se tecendo um panorama da produção no Brasil nos últimos 40 anos.

Os depoimentos, os relatos e os posicionamentos de Marcelo Ferraz jogam luz a um dos períodos mais dramáticos para a arte no Brasil e, sobretudo, devastador para a arquitetura. Da experiência na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, entre 1974 e 1978, onde se formou, apreendeu não apenas o aspecto transformador da convivência no edifício moderno recém-inaugurado (1969), mas, sobretudo, o pesar da ditadura militar que cassou Vilanova Artigas (mestre fundador da FAU-USP) e restringia duramente o acesso à informação.

Não por acaso, esse também foi o período em que, perseguidos e banidos os pensadores e realizadores da arquitetura de invenção no Brasil, assistiu-se ao esvaziamento dos princípios que fundamentavam o desenho moderno, dando início ao exercício de uma arquitetura formalista até então sem precedentes no País. Na direção e em sentidos opostos ao do contexto vigente, a experiência com Lina Bo Bardi – uma italiana tropicalizada – trouxe à formação de Ferraz uma nova e fundamental perspectiva: a antropofagia. Navegar pelos textos de Arquitetura Conversável é redescobrir que, no País do pau-brasil, um desenho possível e desejável é aquele que se lança “contra o detalhe naturalista – pela síntese; contra a morbidez romântica – pelo equilíbrio geômetra e pelo acabamento técnico; contra a cópia, pela invenção e pela surpresa”. Um livro não para especialistas,  apenas para “brazyleyros” de nossa época.


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