Com símbolos não se brinca

Se a gente perguntar para qualquer um na rua o que quer dizer PP, pouca gente vai saber. Mais raro ainda vai ser encontrar alguém que coloque esse partido na salada de siglas que apoiam o governo federal petista e os tucanos em São Paulo. PP são as iniciais de Partido Progressista, o que não quer dizer absolutamente nada.

A história muda completamente de figura quando o sujeito fica sabendo que PP é o partido do Paulo Maluf. Maluf todo mundo sabe quem é: o político cevado nos tempos da ditadura, que prestava vassalagem aos militares, atacava com a Tropa de Choque manifestações de trabalhadores e estudantes, perseguia opositores e jornalistas (tenho a honra de ter sido processado por ele) e apoiava os órgãos de repressão.

Prefeito e governador nomeado pelos militares, ele deu origem ao verbo “malufar” e hoje é procurado pela Interpol em 188 países, depois de ter US$ 153 milhões bloqueados em contas no exterior, que até hoje nega serem dele. Atingiu o auge da sua carreira recentemente ao ser incluído em um ranking do Banco Mundial numa lista de 150 casos internacionais que ficou conhecida como o “hall da fama da corrupção”. Por justa razão, Maluf tornou-se símbolo de uma época de trevas e de degradação ética na política brasileira.

Só por esse motivo, e não por estar selando uma simples aliança eleitoral entre o PT e o PP, para garantir mais tempo na propaganda de TV a seu candidato à prefeitura de São Paulo, causou tanta perplexidade e tristeza aquela pose do ex-presidente Lula com um sorriso envergonhado no beija-mão promovido para a imprensa nos bem cuidados jardins da mansão onde o criador do malufismo reina acima das leis e da vergonha na cara faz mais de 40 anos. Cada vez que passo em frente desse latifúndio urbano da rua Costa Rica, nos Jardins, em São Paulo, não posso esquecer quem é o dono daquele lugar.

O pior de tudo foi ver o novo aliado pontificar, com sua voz anasalada de locutor de leilão de leitoa em quermesse, que acabou esse negócio de esquerda e direita, agora somos todos iguais, o que vale é o tempo de televisão. Em outros tempos, Maluf já posou para fotos dando apoio aos tucanos Fernando Henrique Cardoso e Mário Covas, mas a imprensa não se escandalizou como agora.

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Com símbolos não se brinca. É mais ou menos como um torcedor do Palmeiras mijar na bandeira do Corinthians ou vice-versa. Sim, sabemos todos que política é feita de votos, e votos são em boa parte conquistados pelos marqueteiros da moda com o tempo de propaganda de televisão, a moeda mais valiosa do mercado eleitoral, mas política também é feita de símbolos.

Ao ceder à chantagem de Maluf e ir à casa dele para fechar o negócio por mais 103 segundos de TV, com o único objetivo de alavancar a candidatura de Fernando Haddad, imposta por ele ao PT, Lula manchou com essa imagem a sua própria biografia. Tudo para quê? Só para derrotar José Serra, um tucano de poder cadente, que caminhou da esquerda para a direita em busca de um nicho no mercado de votos, exatamente o mesmo de Maluf?

Lula não tinha o direito de fazer isso com ele mesmo e com os militantes que o ajudaram a construir o PT e o levaram à Presidência da República por duas vezes, de onde saiu consagrado com a maior aprovação da história republicana. Mais do que o maior líder político-partidário do País, responsável por uma revolução que tirou mais de 30 milhões de brasileiros da pobreza e da miséria, Lula hoje é um mito, um símbolo nacional respeitado no mundo todo, e ele sabe disso.

Afinal, Lula representa para todos nós exatamente o oposto do malufismo: retirante nordestino, criado na pobreza, impulsionou a resistência à ditadura militar nas heroicas lutas sindicais do ABC, que o levaram à prisão, e criou um partido liderado por trabalhadores que se afirmou no combate à corrupção dos velhos políticos do tempo da ditadura e na defesa de uma nova forma de participação política.

Ao tentar defender o gesto, os poucos petistas que se arriscaram a fazê-lo argumentaram que o PSDB de Serra também estava disputando o apoio de Paulo Maluf no mercado eleitoral. E daí? Pois o PT não surgiu exatamente para se contrapor a esse vale-tudo na política, do é dando que se recebe, dessa máxima de que o fim justifica os meios? Nunca vou me esquecer de uma frase de Lula, quando começou a baixaria do seu hoje aliado Fernando Collor na campanha presidencial de 1989: “Não vale a pena ganhar a eleição a qualquer preço. O mais importante é aumentar o grau de conscientização política da população”.

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Mais duas derrotas depois, Lula afinal chegou lá, foi reeleito e elegeu Dilma Rousseff sua sucessora. Em outubro do ano passado, quando rodava o mundo fazendo palestras, Lula foi abatido em pleno céu de brigadeiro com um câncer na laringe. Seis meses depois, o tumor desapareceu, mas os tratamentos de radio e quimioterapia deixaram sequelas no corpo e no estado de ânimo do ex-presidente.

Dividido entre a necessidade de cuidar da saúde e prosseguir os tratamentos recomendados pelos médicos, e a ansiedade para voltar logo ao jogo eleitoral, Lula fez uma série de apostas arriscadas para tirar seu pupilo Fernando Haddad dos 3% em que estava estacionado nas pesquisas. Esqueceu-se de que poucos podem muito, a maioria não pode nada e ninguém pode tudo. E acabou retornando aos gramados políticos ainda fora da sua melhor forma. A patética imagem da aliança com Paulo Maluf foi apenas a gota d’água de uma sucessão de jogadas perdidas.

Primeiro, o ex-presidente tomou uma rasteira do prefeito Gilberto Kassab, que acenou com o apoio do seu PSD ao candidato de Lula, foi à festa de aniversário do PT como convidado especial e logo depois voltou aos braços de José Serra. Ninguém entendeu direito essa jogada de Lula, nem no próprio PT, mas o melhor que aconteceu a Haddad, como candidato de oposição, foi ficar livre para bater na administração Serra-Kassab. Para Lula, no entanto, o episódio certamente não serviu para ornar sua biografia.

Disposto a denunciar a “farsa do mensalão”, como anunciou antes de deixar o governo, Lula articulou a criação de uma CPI após as denúncias sobre a ligação do senador Demóstenes Torres, da antiga aliança demotucana, ferrenho adversário dos governos do PT, com o contraventor Carlinhos Cachoeira e setores da imprensa que davam cobertura ao grupo. Logo, porém, embora os partidos aliados tenham ampla maioria na comissão, a CPI do Cachoeira seria transformada pela imprensa em CPI da Delta, a maior empreiteira do PAC, menina dos olhos do governo federal.

Depois, o ex-presidente levou uma bola entre as pernas ao se encontrar com o ministro Gilmar Mendes, do STF, para discutir o julgamento do mensalão, na casa do seu ex-ministro Nelson Jobim, amigo de José Serra, que tratou de levar o assunto à imprensa. Ficou a palavra de um contra a palavra de outro, mas conhecendo Gilmar, Jobim e a imprensa, Lula não poderia esperar outra coisa. Ficou valendo a versão de Gilmar sobre as pressões indevidas que Lula teria exercido. Ocorreu o efeito oposto e, sob severas pressões da mídia, o julgamento logo foi marcado para começar no dia 1o de agosto, com final previsto para a reta final das eleições.

Entre um episódio e outro, em outro lance arriscado, Lula e a direção do partido acabaram rifando o prefeito João Costa, candidato à reeleição no Recife, para garantir o apoio do PSB de Eduardo Campos a Haddad em São Paulo. Deu tudo errado: o PSB indicou Luiza Erundina para vice, mas quatro dias depois ela chutou o balde ao ver a foto de Maluf dando um chapéu em Lula, e se juntou no pote de mágoas a Marta Suplicy. Agora é que Marta não vai mesmo querer entrar na campanha de Haddad. Para completar, no Recife, Eduardo Campos, cansado da briga interna do PT local, que não aceita a indicação do senador Humberto Costa, imposta pela cúpula, resolveu lançar candidato próprio, rompendo assim a Frente Popular com o PT e levando 15 partidos com ele.

É esse o cenário do mercado eleitoral no final de junho, bastante desfavorável a Lula, que vem arriscando muitas apostas e a sua biografia ao mesmo tempo para ganhar pelo menos uma, a mais importante para ele: Haddad derrotar Serra em São Paulo. Para isso, o ex-presidente entrou com gosto no vale-tudo do mercado eleitoral, levando o PT a ceder a cabeça de chapa a partidos aliados em muitas outras cidades importantes do País.

Mesmo que Lula consiga reverter as pesquisas do momento e levar Fernando Haddad à vitória em São Paulo, ficará para sempre a pergunta: valeu a pena pagar esse preço?


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