Passagens pela vida

Todo fim de semana viajo para Petrópolis, mas raramente vou a Araras, onde passei os melhores tempos da minha vida na casa de um amigo de papai, Abel Ribeiro, ficando superamiga dos filhos dele (enquanto lá estava). Isso foi aos 15 ou 16 anos, quando eles e alguns amigos que também lá se hospedavam deviam ter três ou quatro anos a mais do que eu.

Os filhos de Abel e Miriam chamavam-se Márcio e Cláudio, tinham um papo ótimo e só fazíamos rir, contar casos e jogar baralho, além de mergulhar na piscina maravilhosa sempre contando piadas, alegres e satisfeitos dessa vida que nos proporcionava toda a felicidade que um jovem poderia querer.

Eu me lembro dos meninos nos contando que, uma vez, levaram um cartão com uma cópia de um quadro de Van Gogh para mostrar a um colega e ele olhou o cartão, admirou-o um pouco e disse, depois, devolvendo-o aos meninos: “É bonito. Mas ainda prefiro o Vão Gôgo na Cruzeiro”, referindo-se ao Millôr Fernandes, cujo pseudônimo na revista O Cruzeiro era Vão Gôgo.

Nunca mais me esqueci dessa história digna do Millôr, que não sei se ficou sabendo dela antes de morrer, agora há pouco tempo…

Passava as férias de fim de ano com os Ribeiro, até meus pais irem me buscar para irmos à Quitandinha, onde passávamos o Carnaval.

Abel Ribeiro ainda tinha uma casa linda em Botafogo, perto da nossa, que há poucos anos se transformou no Colégio Andrews, na rua Visconde de Silva. E a dele ficou um tempo sem ninguém e acabou virando casa de cômodos, como se chamava naquela época. Era uma casa linda, colonial, coberta de ladrilhos portugueses azuis e brancos, que eu não me cansava de olhar.

Pois agora derrubaram quase todo o quarteirão da sua rua para fazer um desses edifícios enormes e modernos. Vi os pedreiros demolindo a casa junto com meus adorados ladrilhos.

Fui lá, imediatamente, e falei com o chefe da obra. “Quero comprar esses azulejos. Quanto custa?” O homem respondeu: “Essa velharia, caindo aos pedaços?”.

Guardei minha indignação dentro da garganta e perguntei se ele não queria me vender, já que ninguém fazia questão deles. O homem me disse: “Pode levar essa velharia toda de graça. É um prazer. A senhora só tem que arranjar um pedreiro que os tire das paredes”.

Imediatamente, os ladrilhos antigos trocaram de casa e hoje enfeitam o meu jardim como se eu estivesse em Ouro Preto. Mas os meus antigos amigos continuei sem ver, até que agora, em Araras. Resolvi perguntar por eles à dona da casa onde estava hospedada e ela, surpresa, me respondeu: “Eles morreram, você não sabia?”.

Fiquei em estado de choque e chorei escondido. Como é que alguém poderia morrer naquela idade? Para mim, o filme parou na nossa adolescência, não podia imaginar que hoje eles já teriam idade suficiente para morrer, assim como todos os meus amigos que já se foram.

Então, resolvi aproveitar as amizades verdadeiras que restam, fazendo um encontro aqui em casa (antes que ela também vire casa de cômodos) e chamá-los para ver os azulejos portugueses e tomar um vinho assim que a minha obra terminar, para nos lembrar de tantas fases marcantes e felizes, encrustadas em nossas cabeças e corações.

*É atriz, atuou em mais de 50 filmes, 15 telenovelas e minisséries, além de peças de teatro. Também é cronista do Jornal do Brasil e autora do livro O Quebra-Cabeças (Imprensa Oficial, 2005), uma compilação de crônicas publicadas pelo jornal.

 


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