Algum tempo atrás, cheguei a minha casa, um apartamento nos Campos Elíseos, centro de São Paulo, e liguei a CBN justo no começo de uma coletiva da ministra Dilma Rousseff. Uma voz cristalina ia abordando uma questão cabeluda de modo simples. Temia que o depoimento ficasse restrito a uma contra-informação, mas não.
Os enunciados de Dilma Rousseff foram ultrapassando o senso comum da política e dissecando o processo de produção da notícia – dessas que vendem jornal. Como se diz no meio jornalístico, good news is no news, e esta dos cartões coorporativos e do dossiê revelado pela Folha de S.Paulo, em triangulação com o senador Álvaro Dias e a revista Veja, prometia.
A ministra Dilma explicou que tanto as despesas deste como as do governo anterior são imprescindíveis, muitas delas já divulgadas no Portal da Transparência, para o funcionamento de um governo do tamanho do nosso e que a invencionice só tinha importância pelo modo como foi produzida. As matérias do dossiê só adquirem consistência na medida em que convocam o voyeurismo dos espectadores da política para um sujo segredinho ou suposto fato fora de cena e que, pela ação reveladora e investigativa perversa, poderia vir a ser revelado.
Colocar em evidência o fora de cena é operar, literalmente, no terreno do obsceno. Desde o caso Miriam Cordeiro, que contribuiu para a derrota de Lula em 1989, só para situar um caso marcante da história recente, o mundo midiático está pleno de obscenidade. Desde os gregos sabemos que os simulacros são matérias reais, existentes e que em toda época histórica cumpriram funções para diferenciar as idéias falsas das verdadeiras ou para produzir enunciados em tempos de guerra ou de paz. Quando terminou a coletiva da ministra da Casa Civil, percebi, incomodado, que não tinha comprado a Folha. Apesar de assinar o Estado, sempre compro a Folha, por vários de seus articulistas e porque para mim é o jornal do bairro (sua sede é nos Campos Elíseos).
Eram mais de 18 horas, fui para a rua sem esperança, mas logo na primeira banca, a poucas quadras do prédio da Folha, achei uma pilha de jornais. Como podiam sobrar tantos exemplares com uma notícia classicamente tão poderosa? Enquanto transitava pela Alameda Barão de Limeira via as televisões ligadas atraindo o grande público para o gozo da notícia da menina que fora supostamente jogada pela janela do sexto andar; na novela da Globo, uma madrastra torcia para seu enteado se afogar.
Pensei que esse campo de cultura pudesse favorecer a notícia da Folha-Veja: a mãe do PAC transformada em madrasta do PAC. O sinistro, segundo Freud, é uma experiência de captura do narcisismo que é ao mesmo tempo familiar e estranha. Esses fenômenos operam nos dias atuais diretamente na superfície do socius e têm-se demonstrado de grande eficácia. A esses fenômenos dissolventes da cidadania denominamos territórios do social-sinistro – além de atacar popularidades, servem para produzir sujeitos infantilizados.
A novidade, no Brasil contemporâneo, é que essa extensa e intensa massa de invencionices e simulacros não consegue atingir o resultado esperado. Como é possível que, depois de tantas sujeirinhas, futricas e denúncias, o governo Lula tenha conseguido se reeleger? E continue com a popularidade em alta? Esse é um fenômeno absolutamente inédito que nossos semióticos e especialistas em marketing político deveriam estudar.
Será que essa saturação da ação das más notícias se deve somente à estabilidade da economia? Quem ouviu aquela mulher dar as caras com tanta autenticidade e defender o seu trabalho em prol de um Brasil desenvolvido e civilizado fica com vontade de voltar a acreditar na esquerda brasileira.
* Antonio Lancetti é psicanalista |
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