Há muitos anos, nos meus 12, participei de uma caçada no Mato Grosso, às margens do Rio Pardo, junto ao Porto XV. Meu avô organizava essas expedições à qual se juntavam seus companheiros de Bauru e Assis. Eu sabia dessa aventura desde pequeno e sempre quis ir, mas só aos 12 – por que tão tarde? – fui convidado. Fiquei honrado, ganhei uma arma e fui instruído. Uma única vez.

A viagem foi de trem, com tralha monumental. Armas, munição e barracas. Panelas, facas e foices. Enxada e enxadão. Varas, linhas, chumbadas e lampiões. Caixotes enormes e grossas lonas. Acompanhei a preparação, todo carregamento. Uma coisa impressionante.

Em Porto Epitácio, encontramos a gente animada de Assis. Com eles, seu Michele, o cozinheiro. Eu não sabia que existia cozinheiro. Seu Michele, logo vi, era respeitado não só pelo que fazia às panelas, mas por seu passado, que na época não entendi. Guardo a imagem de seu rosto magro moreno, queimado, vincado, coberto por uma enorme cabeleira branca.
O velhinho, sempre ria para baixo, quando falavam de suas façanhas. Eu não entendia nada. Volante? Gambé? Tenente Galinha? Ria também das perguntas que eu fazia quando, em meio ao fumo e a cachaça, a conversa dos caçadores pegava fogo.

Com meu avô, aprendi a atirar de carabina. Com seu Michele, de garrucha, com o dedo junto ao cano, apontando. Chamuscava sempre.

Certo dia, estávamos no rio e vimos um corpo descendo de bruços na correnteza. Meu avô foi até lá, revirou o corpo e disse que tinha as mãos decepadas, era ladrão. Seguiria rio abaixo, para as piranhas. Eu fiquei impressionado com o diagnóstico e mais ainda com a decisão.

Anos mais tarde, vim a saber da Volante ou Captura. Era uma tropa da Força Pública que corria o sertão à caça de ladrões e outros fora da lei. Lei? Havia a lei, mas não se fazia a justiça. A Volante não era uma tropa qualquer, era violenta. Era esperada ansiosamente nas cidades atazanadas por bandidos. Mas era temida também. Passavam da conta. Abusavam. A tropa era comandada por João Antonio de Oliveira, o tal Tenente Galinha. Junto a ele, Boca de Fogo, Serelepe, Manoel do Saco, Cuiabano, Isidoro, Gambé e mais uns poucos. Não chegavam a dez. Marcaram o fim do século 19, em São Paulo.

Seu Michele, depois soube, era o tal Gambé, corruptela de gambérria: armadilha, trapaça. Como associar aquele bom velhinho a armadilha?

O Tenente Galinha – e Gambé junto – andou pelo sertão fazendo justiça com as próprias mãos, pautado por um código moral. À semelhança dos louvados caballeros justicieros, dos samurais, de certos cowboys e outros tantos justiceiros errantes do mundo. Inclusive o Batman, dos dias de hoje.

Talvez eu deva ter orgulho de estar ligado a essa história, mas hesito. Talvez porque justiceiros somente existam em meio à barbárie. Talvez porque nossos justiceiros não tenham sido mitificados como foram os cowboys e os samurais. O mais provável, entretanto, é que meu problema seja mesmo com o nome Galinha. Não orna para justiceiro, nem mesmo em faroeste. Lieutenant Chicken é uma impossibilidade. Até mesmo para um Clint Eastwood.

*PhD pela Universidade de Cambridge, foi professor titular da USP. É autor dos livros Choro de Homem (Ateliê Editorial) e O Pai de Max Bauer (Ateliê Editorial/Editora Brasileiros).


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