Nas graças de Graciliano Ramos

No autorretrato que escreveu aos 56 anos, em 1948, o escritor Graciliano Ramos (1892-1953) resumiu sua vida em 36 linhas de modo único, que revelava senso de humor e, principalmente, o quanto sua personalidade era fascinante. A descrição era em terceira pessoa: “Nasceu em 1892, em Quebrangulo, Alagoas. Casado duas vezes, tem sete filhos. Altura 1,75. Sapato no 41. Colarinho no 39. Prefere não andar. Não gosta de vizinhos. Detesta rádio, telefone e campainhas. Tem horror às pessoas que falam alto. Usa óculos. Meio calvo. Não tem preferência por nenhuma comida. Não gosta de frutas nem de doces. Indiferente à música. Sua leitura predileta: a Bíblia. Escreveu Caetés com 34 anos de idade. Não dá preferência a nenhum dos seus livros publicados. Gosta de beber aguardente. É ateu. Indiferente à Academia. Odeia a burguesia. Adora crianças. Romancistas brasileiros que mais lhe agradam: Manoel Antônio de Almeida, Machado de Assis, Jorge Amado, José Lins do Rego e Rachel de Queiroz. Gosta de palavrões escritos e falados. Deseja a morte do capitalismo. Escreveu seus livros pela manhã. Fuma cigarros Selma (três maços por dia)…” Ao final, acrescenta: “Espera morrer com 57 anos”. Errou por pouco. Viveu mais quatro anos.

Graciliano Ramos era tão ou mais interessante que seus personagens, muitos deles brutalizados pela dureza de um mundo esquecido por Deus. Se Fabiano e sua família, tipos que compôs em Vidas Secas, tinham à sua frente só a visão da luta pela sobrevivência, o escritor se mostrava um tipo dos mais completos como homem do mundo real. Ou seja, cheio de manias. Um homem carregado de preconceitos, vindos de uma educação rígida de um tempo em que a honra estava acima de qualquer coisa. Ele foi o filho mais velho de 17 irmãos de um coronel do sertão, que se diferenciava dos demais por seus interesses literários que acabariam por transformá-lo em um dos maiores escritores brasileiros, autor de grandes romances que se tornaram marcos da literatura regionalista das décadas de 1930 e 1940.

Todas essas facetas estão presentes na melhor biografia sobre ele, O Velho Graça, de Dênis de Moraes, o mesmo que alguns anos depois publicaria a impecável biografia do cartunista Henfil pela mesma editora, a José Olympio. O Velho Graça agora ganha sua terceira edição, pela Boitempo, e volta como uma oportuna chance para que as novas gerações conheçam essa figura tão singular da literatura.

Em seu trabalho de pesquisa, Morais se empenha em explicar o universo de Graciliano, atrelado às ideologias políticas de esquerda em que acreditava e ao imaginário de grupos sociais que o inspiraram. Uma rica história que inclui sua experiência como prefeito eleito de Palmeira dos Índios, em 1926, contra a sua vontade, com pouco mais de 450 votos.

Ali, como autoridade, armou a cidade para enfrentar o bando de Lampião à bala. Deu sorte quando sobreviveu a uma emboscada de jagunços com a mulher grávida de oito meses e quase foi fuzilado ao se posicionar contra o movimento de 1930, que colocou Getulio Vargas no poder. Sua mudança para o Rio foi das mais inusitadas. Deu-se pela força, quando foi levado preso como subversivo, onde amargou os horrores da ditadura Vargas, que narrou em Memórias do Cárcere, em uma história bem contada por Moraes.


Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.