Uma escola no fim da praia

Welisson Batista dos Santos, 10 anos, dobra-se na rede e esmiúça os pés que nunca na vida calçaram sapatos. Só chinelos. Estão inflamados de novo, e inchados. Não faz dois dias que Welisson pegou a agulha de costura da mãe e com ela furou cada milímetro de pele, coberta de pontos pretos e pus. Bicho-de-pé. A cabana na beira da Praia do Jatobá, em Barra dos Coqueiros, Sergipe, onde mora com os pais, dois irmãos e o avô, está infestada deles.

O inseto é do tamanho de uma pulga e a fêmea, quando fecundada, penetra na pele do porco ou do homem, transformando-se em um saquinho de ovos. Toda a família convive com o bicho porque o chão da cabana é de areia. Mas o preferido dessa fauna microscópica – apelidada de tunga ou xiquexique – é Welisson.
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– Boto pra fora tudinho num dia, e no outro tem mais um bocado – diz, desanimado.

Apoiando no chão apenas a beirada dos pés doloridos, Welisson se veste, come rápido um beiju e segue viagem para a escola junto com o irmão, Cleonilson, 11 anos. São 5h30. Caminham quase duas horas pela praia – 5 quilômetros. Cantam, brincam de pega-pega, de lobisomem, correm, caem, cansam. Ao meio-dia, voltam da aula pela mesma beira de praia. O humor é outro. Com o sol quente, a barriga vazia, vão tonteando num trajeto que parece interminável.

– Pelo menos a água salgada alivia a coceira no pé – balbucia Welisson, fitando o horizonte, acariciando as canelas. E engata uma história que ele jura não ser de pescador:

– Um dia vi uma cobra maior do que a senhora. Tava estirada no capim, no fim da praia. Peguei uma tora de pau e dei nela. A bicha deu um bote, eu bati mais. Ela ficou se enrolando no chão e esbagacei a cabeça dela.

Todos os dias, a pequena, mas corajosa, dupla de sergipanos encara aventuras como essa só para poder estudar em uma escola que tem alfabetização para alunos repetentes. Depois da caminhada, deixam a praia e tomam o ônibus da prefeitura que os leva ao povoado do Canal de São Sebastião, onde fica a escola. Isso quando faz sol. Se chove, a estrada enche de lama e o ônibus não dá as caras. Os moleques voltam para casa amuados.

– Era bom ter aula direto, até no feriado, pra nós não ficar pescando e limpando camarão com o pai – comenta Cleonilson.

Os meninos chegam sempre à escola com as pernas bambas, mas prontos para enfrentar um desafio ainda maior que o de pescador: aprender a ler e a escrever. Welisson cursou três vezes a primeira série:

– Eu ficava triste e pensava bem assim: “Ooolha, os meninos tudo passando. E eu, eu não vou passar mais?”. Só podia ser porque a professora não ensinava direito. Eu pedia explicação e ela dizia: “Você não aprende porque não quer, eu tô ensinando”. E eu falava pra ela: “Ô, professora, como vou saber alguma coisa se não sei de nada?”

Com Cleonilson foi igual. Repetiu uma vez a primeira série e uma vez a segunda.

– Ia fazer o quê? Chorava. Uma professora máááá, não botava os outros pra ler, eu só fazia copiar dever do quadro.

Mas agora Welisson e Cleonilson estão sendo alfabetizados. E a lonjura da escola vai encolhendo à medida que vão aperfeiçoando as letras garranchadas no papel; habituando-se a ouvir a própria voz, vacilante, na leitura em voz alta; surpreendendo-se com as histórias que inventam e magicamente colorem no papel.

– Eu tô é alegre. A professora botou eu pra aprender, aprender, até ler. Quando disse à mainha que sabia ler, ela falou: “Graças a Deus, não quero um filho burro” – empolga-se Cleonilson.

– Painho sabe ler um pouquinho e não acreditou quando eu contei a novidade. Aí eu li uma folha todinha do livro. E ele disse: “Ooolha, meu filho já tá sabido!” – orgulha-se Welisson.

Welisson hoje é o melhor aluno da turma e está sempre preocupado em ajudar os colegas, diz a professora Edna Santana.

– Eles chegaram à escola sem escrever e ler nadinha. Foi o desejo de querer saber, aliado à metodologia do trabalho, que os fez aprender – reforça Edna. Cleonilson e Welisson hoje vão e voltam pela praia acreditando que sonhos se realizam. Um quer ser médico, o outro, juiz.

– Cansa, a perna fica doendo, não tem água pra beber, temu fome. Mas pelo menos nós tá aprendendo. Tem um menino lá perto de casa que é analfabeto – diz Cleonilson.

– É, ele tem muita inveja de nós – arremata Welisson.

Welisson e Cleonilson são alunos do Programa “Se Liga” de alfabetização de alunos com distorção idade-série, adotado como política pública em seis estados brasileiros e desenvolvido pelo Instituto Ayrton Senna.


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