Como o antigo Repórter Esso, que se intitulava “testemunha ocular da história”, pode-se dizer que Paulo Moura é, além de testemunha, integrante do caldo de cultura que formou não só a bossa nova como a música brasileira dos últimos 60 anos. Ele estava no meio dos acontecimentos, no nascimento da bossa nova. O disco Chega de Saudade foi lançado no mesmo programa da Rádio Tupi em que foi apresentado o disco Paulo Moura Interpreta Radamés Gnattali.
Em 1951, aos 19 anos, Moura já integrava a orquestra de Ary Barroso como primeiro sax alto em excursão pelo México, e percebia que a garotada da época não se conformava com a música tradicional. Sua casa, na Tijuca, era o quartel-general dessa inquietação, onde se juntavam João Donato, Johnny Alf e Durval Ferreira, entre outros. Moura lembra que alguns desses revolucionários pagaram pela ousadia de tentar mudar o estabelecido. “Já havia uma inquietação em relação à orquestração. O maestro da Rádio Nacional Lírio Panicalli fez novas harmonizações e foi combatido. Testemunhei o Radamés Gnattali ser vaiado porque a música dele não estava de acordo com a moda da época.”
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Mas o saxofonista lembra que, mesmo trazendo o desejo de mudança, futuros ícones da bossa nova reverenciavam a velha guarda. “Tom Jobim e João Gilberto bebiam nas águas de Ary Barroso, Pixinguinha e Radamés Gnattali.” Já em 1962, Paulo Moura era músico da orquestra da TV Excelsior e passava de ônibus pelo Beco das Garrafas. Dava uma olhada, se via algum músico conhecido, descia. Numa dessas estava lá o Sergio Mendes dizendo que queria montar um grupo de bossa nova instrumental. Falou em criar o grupo para atacar lá em cima. “Queria tocar nos Estados Unidos e eu ri, pois sabia das dificuldades impostas pelos sindicatos dos músicos americanos. Mas a idéia se tornou realidade, pois no segundo ensaio fomos convidados para participar do show do Carnegie Hall.”
Se a gravação de “Chega de Saudade” é considerada o marco da bossa nova, o show do Carnegie Hall foi o passaporte para que o ritmo viajasse para os States. Entre outros estiveram na apresentação Tom Jobim, João Gilberto, Carlos Lyra, Menescal, Paulo Moura, Luiz Bonfá, Oscar Castro Neves, Agostinho dos Santos, Sergio Mendes e Sérgio Ricardo. Apesar de ter ido ao show, Moura afirma que partiu para o som de gafieira por não encontrar espaço na bossa nova e no choro. Porém nunca deixou de tocar esses ritmos, encantando-se com as harmonias de João Donato ao piano e Menescal ao violão. “Aquela harmonização estava ligada ao jazz dos anos 1950, que influenciou a bossa nova, que é um braço do jazz, sem nenhuma intenção de diminuir a sua importância.” Para o músico, a bossa nova é um rio cristalino que se vê rolando, mas se se pular lá dentro vai se ver muito mais coisa. “É a música brasileira que está dentro desse rio que se visualiza com a bossa nova.”
Paulo pontua que a influência do jazz se deu por causa do trompetista Chet Baker. “Além de tocar macio, bonito, ele cantava num padrão que foi bem recebido pelo João Gilberto, o melhor cantor do mundo, ao lado de Frank Sinatra. Hoje todo músico de jazz traz bossa nova em seu repertório.” Moura recorda João Gilberto na porta da boate Plaza, em Copacabana, antes da data que virou marco da bossa nova, em 1958. “Toda segunda-feira tinha jam session e a maioria dos músicos ia pra lá, Baden Powell, João Gilberto, João Donato… Quando dava meia-noite, eu e o João ficávamos conversando horas, sempre sobre música, do lado de fora da boate. Tinha dias que o João, revoltado, dizia que estavam tocando palavrões musicais lá dentro.”
No Beco das Garrafas, depois que voltaram do show do Carnegie Hall, Moura lembra que foi programada uma temporada de dois meses com casa lotada, só de instrumental, com roteiro de Ronaldo Bôscoli e apresentação de Miele. “Quiseram fazer temporadas no estilo americano, uma semana para cada grupo. Mas, nos Estados Unidos, o sujeito ia tocar noutras cidades. Nós, como não tínhamos para onde ir, ficávamos por ali, sem tocar. Aí íamos para a porta do Beco falar mal de quem estava tocando.”
O saxofonista trabalha hoje com crianças numa favela. Conta que no primeiro contato com as crianças soube que só conheciam músicas do grupo Jota Quest. O saxofonista resolveu apresentar à garotada “Meditação”, de Tom Jobim. “As meninas já estão cantando direitinho. Estou prevendo que vão ser, pelo menos, backing vocals“. Além do trabalho com as crianças, Moura tem tocado todos os sábados no Conversa Fiada, em Ipanema, onde, ao lado do percussionista Laudir de Oliveira e do baixista Marcelo Mariano, faz o que mais gosta: tocar MPB.
“Às vezes parece que é pretensão. Mas tocar música brasileira é difícil. Tenho de ficar atento para não sair da rítmica. Improvisar é ter o maior número possível de conhecimento. Nos anos 1980 parei de tocar jazz e comecei a tocar MPB. Diziam que eu tinha esquecido, que só sabia jazz. Hoje só toco MPB, daqui a pouco vão falar que não sei tocar jazz.”
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