O homem que encarou o tigre-dentes-de-sabre

Maior felino que já existiu, o tigre-dentes-de-sabre podia ultrapassar os 400 quilos – 100 quilos a mais que o maior gato vivo, o tigre siberiano. Dotados de um par de enormes caninos com até 30 centímetros e forma de adaga, aqueles bichanos ultragraúdos habitaram as Américas de norte a sul por 2 milhões de anos, desaparecendo há 10 mil anos. O que quase ninguém sabe é que esse famigerado personagem da Idade do Gelo era, originalmente, brasileiro.

Seus fósseis foram achados em 1841 em Lagoa Santa (MG) pelo naturalista dinamarquês Peter Wilhelm Lund (1801-1880), que batizou a espécie de Smilodon populator. Lund foi uma das figuras mais importantes das ciências naturais tanto da Europa quanto, e principalmente, do Brasil na primeira metade do século XIX. Um exemplo da sua importância é o fato de não existir nenhum livro de Charles Darwin sem pelo menos uma referência às descobertas daquele dinamarquês perdido nos confins do império do Brasil. Hoje praticamente esquecido entre os europeus, Lund é lembrado no Brasil por um grupo de admiradores, entre biólogos, paleontólogos, arqueólogos e historiadores. Isso sem falar na legião de moradores de Minas Gerais que cultuam sua memória há 130 anos.
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Ao lado de Aleijadinho e Tiradentes, o naturalista é considerado um patrimônio histórico de Minas. O maior feito de Peter Lund foi encontrar as ossadas humanas do chamado Homem de Lagoa Santa, cidadezinha onde viveu. Aqueles fósseis representam a primeira descoberta em nível mundial de uma grande quantidade de restos humanos pré-históricos. O achado deu-se 13 anos antes da descoberta na Alemanha do Homem de Neandertal, em 1856, evento que abriu os olhos da ciência para a possibilidade da existência de espécies humanas extintas – e para o surgimento do mito do “homem das cavernas”.

Embora pouca gente tenha ouvido falar no povo de Lagoa Santa, seu rosto é conhecido dos brasileiros desde 1999, quando foi apresentada a reconstituição facial de Luzia, uma mulher que viveu há 11.500 anos e é considerada a primeira brasileira. Luzia não foi escavada por Lund. Seu esqueleto foi desenterrado em 1975 por arqueólogos franceses que, a exemplo de tantos outros, investigaram e continuam investigando as cavernas que o dinamarquês revelou ao mundo. Os trabalhos atuais são liderados pelo biólogo da USP Walter Alves Neves. Ele é o responsável pela divulgação do rosto de Luzia e autor do seu carinhoso apelido. Walter buscou inspiração em Lucy, a fêmea da espécie Australopithecus afarensis que viveu na Tanzânia há 3,5 milhões de anos. Lucy é considerada a tataravó da humanidade.

UM NATURALISTA PERDIDO NOS TRÓPICOS
A primeira visita de Lund ao Brasil aconteceu entre 1825 e 1829, quando morou em Niterói e estudou a flora da Mata Atlântica. De volta à Europa, obteve seu doutorado em filosofia natural, mas não conseguiu esquecer o Brasil. Resolveu voltar. Desembarcou no Rio de Janeiro em 1833 para uma temporada de estudos que deveria durar três anos.

Ao lado do amigo prussiano Ludwig Riedel, que viria a se tornar diretor do Jardim Botânico do Rio, empreendeu uma viagem de dois anos em lombo de burro através da província de São Paulo. Quando atingiram Goiás, os dois cruzaram o São Francisco e resolveram atravessar Minas para retornar ao Rio. Mas, ao passar por Curvelo, em outubro de 1834, Lund teve seu primeiro contato com as cavernas do vale do Rio das Velhas, repletas de ossos de animais extintos. Aquilo mudou sua vida. O homem cheio de vigor e de curiosidade reconheceu imediatamente o potencial científico daqueles fósseis. Resolveu escavá-los, numa empreitada que acabou prolongando sua estadia nos confins do Brasil por outra década.

Entre 1835 e 1844, ele visitou cerca de 800 grutas e abrigos rochosos, escavando 200 delas. O resultado foi uma coleção de 12 mil fósseis, num total de 149 espécies. Ele descreveu 32 espécies extintas, sendo a mais famosa o nosso tigre-dentes-de-sabre. A descoberta dos homens de Lagoa Santa ocorreu em 1843, quando uma grande estiagem esvaziou a Lagoa do Sumidouro. Trata-se de um grande lago que, como o próprio nome indica, termina numa caverna quase sempre submersa que escoa suas águas para o lençol freático.

O naturalista aproveitou a oportunidade para, entre 29 de agosto e 10 de setembro, escavar todo o interior da gruta. Os sedimentos lodosos escondiam fósseis de animais extintos ao lado dos restos de pelo menos 30 indivíduos de várias idades, de recém-nascidos até idosos. “Foi nessa mistura de espécies extintas e ainda vivas que apareceram os restos enigmáticos do cavalo (pré-histórico) e do homem, todos no mesmo estado de decomposição, de modo a não deixar nenhuma dúvida sobre a coexistência desses seres cujos restos foram enterrados juntos”, escreveu o dinamarquês. Em outras palavras, Lund encontrou evidências da coexistência do ser humano com a megafauna extinta.

A descoberta era extraordinária. Para saber por que, o leitor precisa ter em mente que em 1843 Charles Darwin ainda não havia publicado A Origem das Espécies (1859) e que, portanto, ainda não existia a teoria da evolução. Antes de Darwin, era senso comum que todas as formas de vida surgiram no Gênesis. O que se discutia era por que Deus teria se dado ao trabalho de destruir a sua própria criação, questão premente desde que começaram a ser identificados ao redor do globo fósseis de animais extintos, como o mamute siberiano no século XVII e o mastodonte americano no século XVIII.

Na época de Lund, a resposta para essa questão estava na teoria do catastrofismo. Seu autor, o naturalista francês Georges Cuvier, explicava o desaparecimento das espécies pela ocorrência de diversas “revoluções” na superfície terrestre (ele nunca usou o termo dilúvio), que teriam dizimado por completo os seres vivos das regiões atingidas. Estas, por sua vez, teriam sido repovoadas por espécies de outros habitats. Lund era um discípulo fervoroso de Cuvier. Seu sonho ainda nos tempos da Universidade de Copenhague era empreender uma viagem pelo mundo para coletar espécimes e voltar à Europa para estudá-los pelo resto da vida – exatamente como Darwin fez.

E, assim como Darwin, Lund possuía recursos para tanto. Seu pai era um rico comerciante que, ao morrer, deixou sua fortuna para os três filhos. Enquanto Johan Christian e Henrik Ferdinand ficaram na Dinamarca cuidando dos negócios da família, Peter Wilhelm resolveu, em 1825, sair mundo afora. Quando, em 1834, ele se deparou com os fósseis do vale do Rio das Velhas, identificou ali a oportunidade de uma vida, a chance de encontrar subsídios para comprovar a teoria de Cuvier. Mas o que aconteceu foi exatamente o contrário. Ao longo das pesquisas, Lund foi perdendo suas crenças no catastrofismo.

Quando, em 1843, encontrou as 30 ossadas humanas misturadas com as de animais extintos, foi o banho de água fria que faltava. O ser humano havia convivido com a megafauna. Se Cuvier estivesse certo, nossa espécie teria desaparecido junto com as preguiças terrestres, aquele dinamarquês jamais teria escavado caverna alguma e você não estaria lendo este artigo. Anunciar ao mundo a existência da raça de Lagoa Santa tinha tudo para se tornar o auge da sua carreira. A descoberta lhe garantiria fama e uma posição de destaque em qualquer museu da Europa.

Apesar do tremendo potencial do achado, Lund varreu a notícia para baixo do tapete. Limitou-se a produzir um pequeno ensaio publicado em 1845 em dinamarquês e em francês, e não deu continuidade ao estudo dos esqueletos. O que fez em seguida foi ainda mais inacreditável: aos 44 anos e no auge das energias, ele jogou tudo para o alto. De uma hora para a outra encerrou o trabalho nas cavernas. Doou suas coleções para o rei Christian VIII, da Dinamarca. Encaixotou e despachou dezenas de baús para Copenhague. Vendeu seus escravos e nunca mais botou os pés fora do pequeno Arraial de Lagoa Santa. Lá viveu uma vida pacata por 35 anos, até falecer em 1880, aos 79 anos.

O MISTÉRIO DE UMA VIDA
Nunca se soube ao certo quais os motivos que levaram Lund a interromper sua carreira. A única pista se encontra num curto parágrafo no meio de uma carta enviada em 10 de janeiro de 1845 para Johannes C.H. Reinhardt (1776-1845), seu antigo orientador. Nela lê-se o seguinte:

“O trabalho nas cavernas está no seu final, não porque este não me dê prazer nem falte material. Conheço algumas enormes cavernas de ossos que merecem ser escavadas, mas me falta saúde para tanto, assim como um aprendiz bem instruído para me ajudar. Mas a razão principal são as consideráveis despesas, as quais não me vejo mais em condições de arcar através dos meus próprios meios.”

Reinhardt nunca chegou a ler a carta. Morreu antes de recebê-la. Como Lund jamais tocou no assunto com sua família e os amigos no Velho Mundo, o que ficou para a história foi a impressão de que tudo não passou de uma desculpa esfarrapada. Afinal, ele era um homem rico. Se era verdade que não tinha recursos para prosseguir sua empreitada, como então conseguiu passar o resto da vida num fim de mundo sem trabalhar, gastando seus dias entre longas caminhadas, passeios a cavalo e os cuidados do seu jardim? Muito se especulou sobre as razões que levaram o naturalista a interromper suas pesquisas.

Na biografia que escreveu em 1882, seu discípulo e amigo J.T. Reinhardt (o filho de Johannes C.H. Reinhardt) apontou o isolamento científico e a dureza do trabalho nas cavernas, muitas vezes em condições insalubres – Lund era conhecido por sua saúde frágil. Já o francês Henri Gorceix, diretor da Escola de Minas de Ouro Preto, escreveu em 1884 que a razão teria sido espiritual, decorrência do isolamento no Brasil.

Decorrido um século, a historiadora dinamarquesa Birgitte Holten adicionou na década de 1990 outro ponto de vista. Ela teve acesso à correspondência do naturalista, arquivada em Copenhague. Segundo Birgitte, muitas hipóteses têm sido discutidas, “e o próprio Lund jogou combustível ao fogo com suas diversas escusas, polidas, divergentes e obstinadas”, afirma.

“Suas preocupações com a saúde parecem totalmente exageradas, (…) mas por outro lado algumas das suas precauções – como não ir ao Rio enquanto a cidade estivesse com surtos de febre amarela – eram a única coisa sensata a fazer (…) Sem dúvida Lund era um excêntrico, como não existem mais.”

A HERANÇA DE UM NATURALISTA
O pequeno Arraial da Nossa Senhora de Saúde de Lagôa Santa dos tempos de Lund não existe mais. A rua de terra batida com suas 60 casas simples de pau-a-pique agrupadas na margem de um dos mais belos lagos da região deu lugar a um bairro residencial da periferia de Belo Horizonte, a 15 minutos de distância do aeroporto internacional de Confins. O nome do naturalista, no entanto, está em todo lugar.

No centro da cidade, por exemplo, existe uma pracinha com um busto do dinamarquês e a frase “Aqui sim é bom para se viver”. Do outro lado da rua fica a Escola Municipal Dr. Lund, construída nos anos 1930 no local onde era a casa do cientista. A poucas quadras de distância fica o cemitério Dr. Lund, uma quadrinha de terreno murado e bem cuidado onde ele está enterrado, ao lado de dois de seus assistentes, o pintor norueguês Peter Andreas Brandt e o alemão Wilhelm Behrens.

Como Lund era luterano, não podia ser enterrado em um cemitério católico. Comprou o terreno no alto do morro com vista para a lagoa. Lá crescia um pequizeiro à sombra do qual ele costumava sentar para fumar seu cachimbo e pensar na vida. Árvore de crescimento lento e vida longa, o pequizeiro continua lá, firme e forte. Típico da vegetação do cerrado, estende seus ramos por boa parte do pequeno cemitério. Assim como sua casa, seu jardim, seus livros e tudo o mais que Lund acumulou nos 45 anos em que viveu em Lagoa Santa desapareceram. Os únicos registros existentes são suas cartas. Apenas um par delas está no Brasil, mais especificamente no Rio de Janeiro, na biblioteca do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

A quase totalidade da sua correspondência, um enorme arquivo com mais de mil cartas, encontra-se na Dinamarca. Parte dela foi reunida logo após a morte do naturalista por seu filho adotivo, o brasileiro Nerêo Cecílio dos Santos, que a enviou para J.T. Reinhardt. Este, por sua vez, reuniu as cartas enviadas por Lund aos seus familiares, assim como as endereçadas ao seu pai e a ele próprio. Catalogou tudo, mais de 7 mil páginas manuscritas, e depositou na Biblioteca Real de Copenhague, onde a coleção ficou esquecida por mais de cem anos.

Foi só em meados dos anos 1980 que os bibliotecários começaram a microfilmar os itens da seção de manuscritos antigos. Foi quando a correspondência de Lund voltou à luz do dia. Descobriu-se que seu autor era um poliglota. Além do dinamarquês, dominava o português, o francês, o alemão e o inglês. Também conhecia latim, grego e arriscava um italiano. Existem cartas em todos esses idiomas, porém a maior parte foi manuscrita na sua língua natal. Mas não num dinamarquês como o atual, escrito no alfabeto latino. Nos tempos de Lund, ainda se escrevia em gótico, um alfabeto medieval usado na Dinamarca até 1885.

Os povos escandinavos são todos vikings, os guerreiros que assolaram a Europa há mil anos. Eles não tinham escrita até serem cristianizados por monges germânicos, que usaram o alfabeto gótico para colocar em letras os fonemas dos diversos dialetos vikings. Vale dizer que o dinamarquês deriva de uma mistura de viking com alemão medieval.

Praticamente todo esse arquivo foi decifrado, lido e estudado na década de 1990 por uns poucos historiadores dinamarqueses, com destaque para Birgitte Holten, do Instituto de História da Universidade de Copenhague. Assim se soube que, bem antes do achado das ossadas do povo de Lagoa Santa, já havia começado a desaparecer da mente do nosso naturalista a linha divisória entre as espécies extintas e as vivas. Antes de encontrar os restos humanos, ele passou a aceitar o fato de algumas espécies terem sobrevivido à catástrofe cuvierista. Afinal, uma coruja é uma coruja, um preá é um preá, e um veado-mateiro é um veado-mateiro. Estejam eles vivos ou petrificados.

A pesquisa de Birgitte, no entanto, não foi capaz de jogar novas luzes sobre as razões que levaram Lund a interromper o trabalho nas cavernas. Foi necessário aguardar um novo milênio. Ao autor desta reportagem coube descobrir algumas pistas fundamentais. A primeira delas está relacionada à tal carta de 10 de janeiro de 1845, na qual o naturalista confessou ao seu antigo professor que talvez tivesse de encerrar as escavações por falta de dinheiro. Na lista em ordem cronológica da correspondência, existe outra carta escrita naquele mesmo dia. Endereçada ao rei da Dinamarca, nela Lund doava suas coleções ao povo de seu país – sem fazer a mínima menção a uma suposta falta de recursos.

SURGE UM NOVO PERSONAGEM
Embora exista uma lista cronológica das cartas, a coleção não está agrupada dessa forma. Existem diversos fólios, cada qual reunindo um determinado conjunto de documentos. Assim, há um fólio com a correspondência trocada com a família; outro com os Reinhardt (pai e filho); um terceiro com personagens diversos, entre amigos, colegas naturalistas na Europa, comerciantes e livreiros no Rio de Janeiro; e um caderno de rascunhos cheio de rabiscos, abreviações, frases inseridas e outras riscadas. Era nele que Peter Lund redigia a primeira versão de todas as cartas.

Num segundo momento, ele as corrigia. Só então as passava a limpo e as enviava. Bem no meio das centenas de páginas borradas com garranchos muitas vezes ilegíveis existem três dúzias de cartas em português, enviadas entre 1840 e 1846. Sua leitura conta a história de um processo judicial que Lund moveu contra um certo engenheiro húngaro chamado Franz Wiszner von Morgenstern (1804-1878).

O motivo era a falência de uma lavra de ouro da qual Morgenstern era sócio e Lund, seu fiador. Em 1839, o trabalho de Lund nas cavernas estava a todo o vapor. Já imaginando seu futuro retorno à Europa, ele informou à família seu plano de se fixar no sul da França, bem longe do inverno escandinavo. Talvez como forma de aumentar sua fortuna ou simplesmente para repor o que havia gastado nas escavações, resolveu investir numa lavra de ouro no ribeirão de Papafarinha, em Sabará (MG). Na época, os riscos da prospecção de ouro eram enfrentados por imigrantes europeus. Morgenstern era um deles.

Não se sabe quando ele desembarcou no Brasil. Sabe-se apenas que viveu em Minas entre 1839 e 1841, quando desapareceu sem dar notícia. Ressurgiria em 1845 na corte de Solano López, onde projetou o palácio do ditador em Assunção. Em 1865, na Guerra do Paraguai, o húngaro viria a receber a patente de coronel de engenharia, respondendo pelas fortificações no Rio Paraguai. Esse personagem insólito desempenhou um papel decisivo na vida de Lund.

Em fevereiro de 1840, Morgenstern e o brasileiro Martiniano Pereira de Castro assinaram um contrato no valor de 12 contos de réis para criar a Lavra de Papafarinha. Ficou acertado que Martiniano teria seis meses para entrar com a sua metade do capital, enquanto Morgenstern contrataria um empréstimo para saldar a sua parte no investimento, 6 contos de réis emprestados de Peter Lund. Nosso naturalista nunca mais viu a cor desse dinheiro.

Já no início de 1841, a mina não havia produzido uma única pepita e faliu. As cartas revelam que Lund se armou de paciência para cobrar a dívida, ao passo que Morgenstern usou e abusou de subterfúgios para postergar o pagamento. O naturalista contratou os serviços de Quintiliano José da Silva, um procurador de Sabará, para cobrar o húngaro na Justiça. Foi quando começou a constatar na própria pele que o respeito às leis e uma justiça célere são coisa de país protestante. A morosidade dos tribunais brasileiros não tem nada de nova. É uma herança dos tempos coloniais, como Lund pôde comprovar.

Nesse meio-tempo, Morgenstern deu no pé. Assim se passaram cinco anos, os mais produtivos da carreira do naturalista. O que ninguém jamais soube é que, enquanto ele escavava homens-fósseis, perdeu o processo. Foi condenado a pagar as dívidas do húngaro e de seu sócio brasileiro, mais correção e despesas. No caderno de rascunhos encontram-se os cálculos de Lund sobre o valor com juros da dívida de Morgenstern para com ele: 7 contos de réis e 886 mil-réis, ou R$ 318 mil corrigidos monetariamente. Some-se isso aos 12 contos de réis da falência de Papafarinha e temos um prejuízo atualizado que supera a casa dos R$ 800 mil. É muito dinheiro, mesmo para alguém rico. Lund, é claro, recorreu do veredicto.

Apenas para ser surpreendido no fim de 1844 com a decisão do procurador Quintiliano de abandonar o caso. Ele havia sido escolhido presidente da Província de Minas Gerais e estava de mudança para Ouro Preto. O processo empacou de vez. No dia 9 de janeiro de 1845, Lund enviou uma carta para Quintiliano informando sua disposição de se mudar para Sabará para acelerar o processo. No dia seguinte, 10 de janeiro, ele tomou da pena para redigir duas cartas, uma para seu velho professor, na qual levantou a hipótese de encerrar os trabalhos por falta de dinheiro. A outra para o rei, doando suas coleções.

E ASSIM SE PASSARAM 163 ANOS
Como se sabe, o órgão mais sensível do corpo humano é o bolso. Com Lund não foi diferente. Tudo bem, ele ficou sem dinheiro, teve de vender seus dois escravos e parou de pesquisar. Mas ainda assim seus irmãos lhe enviaram recursos suficientes para que passasse de forma confortável o resto da vida no Brasil. Por que não voltou à Europa? Talvez fosse o medo do inverno escandinavo. Talvez tivesse receio de sua família descobrir que ele havia perdido uma fortuna no Brasil. Ou, pior ainda, pode ser que temesse que o rei viesse a saber que ele havia omitido deliberadamente aquele “detalhe” quando resolveu doar suas coleções. O fato é que Lund nunca mais falou do assunto.

Passados 163 anos desde o fim dos trabalhos nas cavernas e 128 anos desde a sua morte, sabe-se hoje que Lund não havia inventado nenhuma desculpa esfarrapada. A falta de dinheiro era a mais pura verdade. Um cientista brilhante foi obrigado a interromper sua carreira no seu ponto culminante por causa de um empréstimo sem garantias feito à pessoa errada. Ou por um investimento malfeito. Ou ainda por uma crença ingênua na certeza da Justiça. Tanto faz qual seja a escolhida, as três respostas resultam num mesmo destino: o dinheiro acabou. E ponto final.

A correspondência do sábio de Lagoa Santa juntou pó por cem anos, apenas para ser redescoberta por historiadores dinamarqueses que, contrariamente a tudo que se possa acreditar, não dispunham da única ferramenta necessária para elucidar o mistério da vida de Peter Wilhelm Lund. Não bastava ser fluente em dinamarquês. Não era preciso aprender gótico. Como poderiam desconfiar que a solução estaria numas poucas páginas rabiscadas em português?

PIOR QUE TIGRE-DENTES-DE-SABRE É APRENDER DINAMARQUÊS EM GÓTICO
Peter Moon se envolveu com a vida de Peter Wilhelm Lund em 2003, quando procurava um tema para sua tese de doutorado em história da ciência. Ao visitar as escavações da equipe de Walter Neves em Lagoa Santa, Moon conheceu o geólogo mineiro Luís Beethoven Piló, um fã de carteirinha do dinamarquês.

Foi quando o jornalista começou a tomar conhecimento da trajetória do naturalista. Ficou sabendo de suas descobertas e do fim dos trabalhos de campo, que permanecia sem solução. Ouviu falar também da coleção de mil cartas arquivada há 120 anos na Biblioteca Real de Copenhague. E decidiu tornar a vida de Lund o tema da sua pesquisa. O objetivo era entender por que o descobridor do tigre-dentes-de-sabre tinha parado de escavar. Como fonte, Moon escolheu a antiga correspondência. Mas, para estudá-la, era preciso antes de mais nada decifrá-la e traduzi-la.

O doutorando teve de aprender dinamarquês com professores particulares, e também ler gótico – para o qual não existe professor. Mas, por sorte, há na internet algumas “pedras de Roseta”, tabelas com a relação entre as letras manuscritas góticas e as latinas. Elas são obrigatórias, por exemplo, para quem estuda Søren Kierkegaard, o maior filósofo da Dinamarca e – acredite ou não – primo-irmão de Peter Lund.

Foram cinco anos de trabalho até Peter Moon defender sua tese, em agosto de 2007, na Universidade de São Paulo. O jornalista, que trabalhou como editor neste número de
Brasileiros, revela em primeira mão aos leitores da revista a verdadeira história por trás do mistério da vida de Peter Wilhelm Lund.


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