A redação do Globo Rural fica na sede da emissora, na Avenida Luís Carlos Berrini, um dos mais efervescentes pólos econômicos paulistanos. Como nas demais redações da TV Globo, os móveis são de madeira clara e as paredes de uma viva cor de terra. Não há pôsteres de bois, plantas ou outros bichos. Os ícones rurais ficam restritos aos troféus, prêmios ganhos nestas quase três décadas de vida do programa, todos expostos sobre um armário ao lado da sala do editor-chefe, Humberto Pereira – no comando desde o nascimento do programa, em 6 de janeiro de 1980.
Por esse cenário neutro, que poderia abrigar um banco ou um grande escritório comercial, transitam muitos outros profissionais, como o chefe de redação Gabriel Romeiro, concentrado em seu computador. No total, há 37 pessoas na folha de pagamento do programa, sem contar sonoplastas, motoristas e outros. Como Pereira, muitos deles circulam por ali há décadas, como o repórter Nelson Araújo, o que imprime unidade ao programa que puxou para si a missão de noticiar não só o que há de novo no agronegócio, mas também as atividades, a cultura e as tradições do homem do campo brasileiro.
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De repente, parte da redação se levanta e começa a fazer ginástica, uma dessas medidas corporativas que visam promover o bem-estar e prevenir lesões por esforços repetitivos em funcionários que teclam no computador por horas a fio. Um dos mais animados na atividade é José Hamilton Ribeiro, 73 anos a ser completados em 29 de agosto. Ele alonga com entusiasmo os braços após deixar de lado a bengala na qual tem se apoiado desde setembro de 2007, quando tropeçou num degrau ao tirar a sela do cavalo que montava em sua fazenda em Uberaba, no Triângulo Mineiro. No acidente, quebrou em três lugares o fêmur da perna esquerda, a mesma ferida durante a cobertura da Guerra do Vietnã.
A perda de 40 anos atrás não marcou somente o corpo do jornalista, mas sua biografia. Ele estava a serviço da revista Realidade e, em qualquer das inúmeras palestras que hoje profere, a pergunta inevitável é: como foi a experiência de ter sido o único brasileiro a cobrir aquela guerra? Repórter de uma guerra só Não por acaso, “Eu estive na Guerra”, publicada na edição de maio de 1968 da Realidade, tornou- se uma das mais famosas reportagens brasileiras de todos os tempos.
Está no volume 1 do livro A Arte da Reportagem, organizado pelo jornalista e docente Igor Fuser, e mais recentemente em O Repórter do Século, de José Hamilton. Por meio dela sabemos que, no dia 20 de março de 1968, o repórter estava feliz. Aos 32 anos, era seu último dia de guerra antes de iniciar a volta para Saigon e dali partir para encontrar sua esposa, Maria Cecília, e gozar de merecido descanso. A data da volta tinha um motivo bem concreto: era o prazo final da validade do seguro de vida de apenas 14 dias da Lloyd’s de Londres – nenhuma companhia brasileira tinha ousado fazer a cobertura.
Horas antes de a apólice expirar, José Hamilton e o fotógrafo japonês Keisaburo Shimamoto partiram com a companhia Delta, da 1ª Divisão de Cavalaria Aérea dos Estados Unidos, para “limpar” a “Estrada sem Alegria” de vietcongues – guerrilheiros da Frente Nacional para a Libertação do Vietnã que tinham nas minas terrestres seu principal recurso de defesa. Durante a marcha, uma mina explodiu a 20 metros de José Hamilton Ribeiro, atingindo dois porto-riquenhos. “Observando a movimentação de todos em direção aos feridos, por um momento me passou pela cabeça a certeza de que o terreno entre a minha posição e a dos feridos, já tão fartamente pisado, não podia ter mais mina nenhuma”, escreve na reportagem.
Até então, tinha saúde boa: exceto por um defeito de nascimento no olho esquerdo, que tinha 10% de visão. O jornalista corria em direção aos feridos quando ouviu uma segunda explosão. “É um tuimm interminável, que me atravessa os ouvidos de um para o outro lado, dá-me a sensação de grandiosidade. Sinto-me no ar, voando, mas, ainda assim, com uma certa tranqüilidade para pensar: – A guerra é de fato emocionante. Agora entendo como há gente que possa gostar de guerra.” Demorou para entender que o atingido tinha sido ele próprio. Enquanto era socorrido e até chegar ao hospital, acreditava estar inteiro, apesar de ter-se visto sem o pé esquerdo. “Se eu sinto os dedos, é porque eles existem, e não existe dedo sem pé, logo, o meu pé esquerdo está lá, firme”, escreve.
Foi uma das poucas vezes na vida em que Zé Hamilton não estava certo: a pequena mina, de apenas 80 milímetros, havia arrancado parte da sua perna esquerda abaixo do joelho. – Acho bom você vir para cá, pois o Zé machucou o pé – disse pelo telefone para Maria Cecília o jornalista de Realidade Sérgio de Souza (fundador e editor da revista Caros Amigos e falecido no último 25 de março).
Nascida no sul de Minas, Maria Cecília havia passado a infância em São José do Rio Pardo (SP) e tinha vindo estudar letras na PUC de São Paulo. Findo o curso, em 1964, fez um teste na nascente Editora Abril e passou a trabalhar como copidesque na revista Claudia. “Foi nos corredores da Abril, na época na Rua João Adolfo, no centro, que a gente se cruzou”, lembra Maria Cecília, sentada no apartamento no bairro da Aclimação, que o casal comprou com o dinheiro do seguro. “Quando o conheci, ele roía as unhas de tensão. Por isso, quando datilografava as matérias, usava luvas. Aquilo chamou minha atenção.” Ela não sabe dizer quem começou a paquera.
Fotos da época mostram uma bela jovem com os traços delicados, cabelo cacheado e cinturinha de vespa. Zé Hamilton, que mais tarde seria descrito por boletim da France Presse como alto e encorpado (ele tem 1,79 metro), era, então, repórter da revista Quatro Rodas, tocada por Mino Carta. Dá para arriscar que os olhares foram de duas vias. “Foi namoro rápido. Em um ano, em 21 de setembro de 1964, já estávamos casados”, conta Maria Cecília, lembrando que, por serem primos distantes e a mãe dela conhecer o pai dele, de Guaxupé (MG), a aproximação foi facilitada.
– Como machucou o pé? – perguntou Maria Cecília ao jornalista da Realidade. Ela estava em Santa Rosa de Viterbo, interior de São Paulo, para onde tinha levado a filha de 2 anos, Ana Lúcia – hoje editora-assistente da revista Caras – para ficar com os avós paternos enquanto ela encontraria o marido nos Estados Unidos. Aos 29 anos, Maria Cecília pegou o primeiro ônibus de Ribeirão Preto para a capital. “Que pé machucado, que nada. Ou ele morreu, ou está muito machucado”, pensou.
Em uma parada, comprou um jornal, o Última Hora, se não está enganada. Nenhuma linha sobre o Vietnã. Quando um senhor sentado ao seu lado no ônibus terminou de ler outro diário, ela propôs uma troca. Chamou sua atenção uma notinha com o título “Repórter brasileiro se fere no Vietnã”, provavelmente escrita com base no despacho da France Presse: “O jornalista José Hamilton Ribeiro, de Realidade, foi ferido ontem num pé ao explodir uma mina, quando seguia as operações da 1ª Divisão de Cavalaria Aérea dos Estados Unidos”.
“Sou emocionalmente controlada. Mas quando desabo… Comecei a chorar alto. O cara entrou em pânico. Eu não conseguia falar. Logo o ônibus parou, a meu pedido, na Marginal Tietê e fui a pé até a editora. Quando cheguei, estavam todos assustados. Poucos vieram me receber. Acho que era medo de fazermos um chororô geral.” Na época, a telefonia fixa no Brasil era precária. Em Saigon não era diferente. Nos 15 dias seguintes, enquanto o marido sofria quatro cirurgias, Maria Cecília ficou na casa da mãe, à espera de ligações.
Até que, no fim de abril, Zé Hamilton foi liberado e partiu para os Estados Unidos, via Japão. Foi no Hospital Militar da Marinha, em Chicago, que a esposa o encontrou. Não estava preparada para o que viu. “Pensei que ele estivesse apenas com a perna enfaixada. Mas a perna estava presa bem no alto, para a musculatura não regredir, os braços enfaixados, os dedos com enxertos, o rosto ainda escuro, com resquícios da bomba, e ele estava 20 quilos mais magro. Foi pior do que eu imaginava. Ele era outra pessoa.”
Permaneceram por seis meses nos Estados Unidos enquanto José Hamilton fazia reabilitação com uma perna mecânica. “O hospital era cheio de gente com traumatismo do Vietnã, foi um circo de horrores”, recorda-se Maria Cecília. O processo de se acostumar à prótese tomaria os dez anos seguintes da vida do jornalista. Ao lado do pavor de não poder voltar a trabalhar, de ter de se aposentar aos 32 anos. A memória mais antiga que a filha Ana Lúcia Ribeiro, 41, tem do pai é ele descendo do avião com um passo mais largo do que o outro.
Sentada no departamento de fotografia da revista Caras, mulher alta e magra, cabelos pretos curtos cuidadosamente penteados e o rosto alongado como o do pai, não se lembra que a casa ficava cheia o dia inteiro, que ela chorava o tempo todo por ter dificuldade de se lembrar dos pais depois de seis meses de ausência, e que a família teve de ir para Uberaba por um mês para se reaproximar. Recorda-se apenas dos brinquedos fantásticos que desembarcaram junto com o pai, que ao fim do dia costumava dizer: “Vem me ajudar a tirar o aparelho, Ana”.
Quando Teté, a caçula, nasceu dois anos depois, em 1970, o quadro já era outro. O jornalista havia voltado à redação em 1969. Devido ao regime militar e a algumas mudanças internas, a fase áurea da Realidade havia acabado. O golpe de misericórdia foi dado pela própria Abril, que acabou tendo como nova menina-dos-olhos a semanal Veja, onde Zé Hamilton entrou em 1972.
Exílio voluntário
Em 1974, aborrecido com a falta de liberdade – havia um censor do governo na redação -, Zé Hamilton preferiu trocar o bom salário por um convite para deixar São Paulo e dirigir O Diário, de Ribeirão Preto, a seguir o Dia e Noite, de São José do Rio Preto, e finalmente o Jornal de Hoje, de Campinas. “Naquela época, jornalismo era feito nos grandes centros, em São Paulo, Rio e Brasília. Havia também a questão do salário – era um quarto do que eu ganhava aqui”, lembra Zé Hamilton. Difícil, também, ter de ser chefe e gastar mais tempo administrando do que escrevendo.
Em 1980, depois de algumas idas e vindas, ocorreu a volta definitiva para a capital. Logo Zé Hamilton estava na TV Globo e daí para o Globo Rural, dois anos depois, foi um pulo. Finalmente ele se sentia em casa novamente. Mas o que faz dele um jornalista tão especial? Zé Hamilton tem alma de repórter. O que significa ser, acima de tudo, humano – com vários defeitos. “Ele não entende nada de moda. É descuidado ao se vestir. Sou eu que compro as roupas dele”, diz a esposa. “Mas implica com a roupa da gente. Adora quando chegamos para vê-lo todas arrumadas, bem penteadas e maquiadas”, diverte-se Ana.
Senso doméstico? “Nenhum. Ele tem uma tremenda energia, mas para trabalhar no que sabe fazer. O Zé não prega um prego na parede. A TV encrenca? ‘Cecília, vem ver o que está acontecendo!’ Certa vez pediram que ele desse uma receita de ovo cozido para uma revista e ele deu. Errada: ‘Ponha o ovo na água fervente e deixe por 4 minutos’. Isso é para fazer ovo poché”, ri Maria Cecília. parceria dos dois é forte: “Nossa vida nunca foi fácil, mas a gente teve coragem. Continuar sempre foi nossa prova maior”. O repórter tem seu lado romântico. “Outro dia cheguei em casa, o Zé estava com dois copos na mão e ergueu um brinde – era nosso aniversário de casamento!” Mas o romantismo tem limites. “Na nossa família não tem aquela história dos casais dos filmes suecos, que planejam viagens para depois da aposentadoria. O Zé só tem cabeça para as próximas matérias…” E olha que são muitas. Ele tem sempre uma lista de dez idéias para transformar em matérias. E muita vontade para fazê-las.
Um repórter do Globo Rural passa de 80 a 110 dias por ano com o pé na estrada – viajar faz parte da profissão. Mas a imagem de um pai ausente nunca fez parte da rotina familiar. “Ele sempre foi muito participante”, diz Teté Ribeiro, 37, a filha mais nova que queria ser veterinária, fez filosofia na Universidade de São Paulo e acabou fisgada pelo prazer de fazer jornalismo. Altura mediana e magra como a irmã mais velha, com os cabelos ondulados, agora ruivos, e os traços delicados como os da mãe, Teté está sentada com os pés dobrados sob o corpo na cadeira confortável do apartamento nos Jardins, que ocupa enquanto está em São Paulo e a reforma do novo não sai.
Ela pisca com prazer os olhos azuis ao lembrar do pai chegando em casa, sempre com idéias e novidades. “Ele podia viajar muito, mas estava mais presente do que muito pai que trabalha das 8 às 5 e chega cansado ou emburrado em casa. Nas férias, quando íamos para Uberaba, ele fazia filmes em super-8 com a gente. Mas não eram filmagens de festinha de aniversário, não! Eram filmes de aventura, com roteiro, personagens, cavalos atravessando rios, edição… Ele é 110% presente.”
O tema da guerra não fez parte da infância de Teté. “Meu pai nunca nos contou sobre o Vietnã. Quando nasci ele já era o cara que tirava a perna à noite. Aliás, eu não tinha noção de que ele era tão admirado. Foi somente na faculdade que um amigo, que além de filosofia cursava jornalismo, me perguntou, espantado: ‘Puxa, você é filha DO José Hamilton Ribeiro?’” O tema Vietnã não marcou sua infância, mas voltou à baila há cinco anos, no início da Guerra do Iraque, recorda Teté, casada há oito anos com Sérgio Dávila, correspondente internacional da Folha de S.Paulo. O casal hoje reside em Washington, onde o jornalista cobre a eleição presidencial americana, mas em 2003 estava em São Paulo, fechando o contrato de aquisição de seu primeiro apartamento, quando o celular de Sérgio tocou. Era da redação da Folha:
– Você pode ir para o Iraque?
– Me dê um minuto para pensar – respondeu Sérgio, na época com 38 anos, seis a mais do que o sogro quando foi para o Vietnã.
– O que você acha? – perguntou à esposa. Teté pediu conselho à mãe, que já havia passado pelo apuro.
– Diga para ele não ir, sabendo que não vai adiantar – orientou Maria Cecília. Teté ainda tentou um último trunfo.
– Fale com meu pai – pediu. Ela sabia que o marido adora o sogro e que o papo pesaria na decisão. Sérgio ligou na hora para José Hamilton.
– Qual seu cargo aí na Folha? – perguntou o sogro.
– Repórter especial – disse Sérgio.
– Se você não vai cobrir o evento mais importante do mundo, você é especial por quê? – cutucou Zé Hamilton.
Sérgio foi, ficou 40 dias e felizmente não sofreu nenhum trauma. Físico. Mas não passou ileso pela guerra. Ninguém passa. “Ele às vezes tinha pesadelos e acordava chorando”, lembra Teté. Pela primeira vez, Zé Hamilton viveu as agruras de ficar à espera de notícias de alguém que foi à guerra. “Meu pai me dizia que não tinha idéia de como era angustiante esperar notícias.” Mesmo com todo o avanço tecnológico do século XXI, o alívio só chegava com uma ligação ou a entrega do jornal – o que permitia deduzir que até as 20 horas do dia anterior Sérgio estava na ativa.
Na redação do programa Globo Rural, o chefe Humberto Pereira hesita um pouco antes de responder à pergunta sobre os defeitos do jornalista Zé Hamilton. O bigode grisalho pára levemente de se mover enquanto os olhos piscam por trás dos óculos com aro de tartaruga. Logo ele confidencia, em voz mais baixa: “Ele é muito puro para política. Quebrou a cara várias vezes no Sindicato (dos Jornalistas do Estado de São Paulo). Política é coisa meio malandra”, justifica.
O outro lado da realidade
“Mas ele tem a habilidade de ver o outro lado”, prossegue Pereira. “Na época em que José Mauro de Vasconcellos lançou Meu Pé de Laranja Lima, a crítica caiu de pau. Zé Hamilton foi do contra. ‘Eu acho uma ótima pauta. Esse é o livro mais lido de um Brasil que tem (Jorge) Amado e (Erico) Verissimo. Como a maioria dos brasileiros não lê, esse livro é de uma importância enorme, pois será o primeiro contato de muita gente com a literatura.’” “É por essa capacidade de perceber o que ninguém está vendo que ele acaba sendo bom nos furos”, lembra a esposa.
E ele não sente preguiça de escarafunchar tudo sobre um tema. “Na época em que estava fazendo a matéria do rim (ganhadora do Prêmio Esso de Informação Científica em 1967), estava tão ligado na pesquisa que falava ‘cateter’ dormindo. Tinha até pesadelos. Em seguida, ele elabora, estruturando tudo o que pesquisou até o produto final”, diz, lembrando que, como bom virginiano, Zé Hamilton é um rematado perfeccionista. “Além disso, ele tem facilidade de se comunicar. Fala com uma linguagem que o entrevistado entende, com aquele jeito roceiro que deixa o outro à vontade. Essa é a chave dele”, sintetiza Maria Cecília.
“Meu pai vai para a pauta aparentemente como quem não sabe de nada. Só nós sabemos quanto ele pesquisa antes de ir para o campo. Ele sabe tudo sobre o assunto, mas o fato de parecer que está caindo de pára-quedas faz com que o entrevistado relaxe. E ele nunca vai direto ao ponto: vai sempre comendo pelas bordinhas. E se envolve na história que está cobrindo por completo. Repare no vídeo: ele costuma ficar grudado na pessoa, fisicamente até”, observa Teté. Humberto Pereira ressalta uma qualidade menos conhecida do jornalista Zé Hamilton: sua competência em trazer temas científicos para a linguagem jornalística – tanto que ganhou prêmios Esso por ela.
Pereira enumera outros pontos fortes: “Ele é um exímio perguntador, conseguindo captar a alma do entrevistado. Outra característica marcante é seu texto. Ele sabe como estruturar uma narrativa. Chega até a usar vocábulos raros, mas que fazem parte da comunidade do interior. Quem não conhece acaba aprendendo”. Companheiro dos tempos da Realidade, Pereira chama atenção para o fato de Hamilton ser apaixonado pelo jornalismo, e ter orgulho de fazer seu trabalho bem-feito. Aproveita para contar um causo que revela o perfeccionismo do colega: “Temos a tradição de fazer uma reunião de avaliação do programa do domingo na segunda-feira e um videoshow às quartas-feiras, exibindo as matérias que vão ao ar no domingo seguinte. Quando ele começou no programa Globo Rural, passou a participar das reuniões e um dia pediu a palavra: ‘Já rodei o Brasil e o pessoal sempre elogia o programa. Aqui é onde mais se critica o Globo Rural. Isso é excelente’”, recorda Pereira.
Outro repórter especial, Marcelo Beraba, da redação carioca da Folha de S.Paulo, costuma se levantar cedo aos domingos para conferir o trabalho de Zé Hamilton: “Eu tenho uma admiração muito grande não só pelo histórico singular dele, mas pelo presente. Ele é um repórter completo em atividade numa profissão em que é raríssimo ter uma carreira de repórter, pois as pessoas vão assumindo outras funções de gestão. As reportagens que ele faz são muito bem apuradas, dá prazer assistir – como as sobre música caipira. Ele é o exemplo maior de que é possível fazer reportagens de qualidade na televisão”.
Na apresentação do livro O Repórter do Século, o jornalista Ricardo Kotscho analisa: “Que outro repórter, a não ser ele, seria capaz de trilhar por tantos temas com a mesma tranqüilidade de quem toma um sorvete na praia? Que outro seria capaz de transformar assuntos áridos como transplantes de órgãos e pesquisas científicas sobre esquistossomose em matérias agradáveis de ler? São textos agradáveis e, ao mesmo tempo, informativos, alternando gente e números como num filme que vai do close para o plano aberto num ritmo que dá até tristeza quando a matéria termina”.
Zé Hamilton é também dono de um humor exemplar. Certa vez, num debate, perguntaram a ele se era difícil fazer reportagem com uma perna só. Sem se abalar, parecendo até tirar da boca o cigarro de palha que não fuma, deixou o perguntador sem graça. “É difícil, sabe?… Mas é mais fácil do que com quatro…”
O que José Hamilton Ribeiro pensa de Zé Hamilton? Para explicar, ele cita uma frase de Kotscho. “Repórter é como goleiro. Tem de ter sorte. Às vezes o goleiro é ótimo, mas no último minuto deixa entrar um gol. Eu sou uma pessoa que teve muita sorte na vida. Cheguei na Folha de S.Paulo em 1955, com 20 anos, num momento de explosão em que o jornal tinha ambição de ser nacional e estava investindo em reportagens. Aí fui para a Abril, que estava passando de uma empresa que traduzia revistas para apostar no jornalismo brasileiro. Entrei na Quatro Rodas, a primeira publicação para homens, em seguida na Realidade, vi a Veja nascendo. Quando saí da empresa, a Abril já era uma das maiores do mundo.”
Ele prossegue: “Na época da ditadura dei sorte de novo e fui para Ribeirão Preto, depois Rio Preto e Campinas – cidades do interior onde o jornalismo impresso ainda era feito como no século XIX, com linotipo. Quando cheguei passamos para a tecnologia da composição a frio e impressão offset. A qualidade aumentou tanto que a concorrência teve de ir atrás. Quando a democracia voltou, fui chamado pela Globo para fazer telejornalismo. Pode-se falar várias coisas da emissora, mas ninguém pode negar que tem jornalismo bem-feito. E no Globo Rural temos a possibilidade de fazer um acabamento jornalístico melhor, pois sofremos menos pressão do Ibope pelo fato de ele ir ao ar nas manhãs de domingo. As pessoas podem curtir mais o programa porque ele tem o ritmo da natureza”.
Nessas quase três décadas de programas rurais, qual o seu favorito? Mais uma vez ele surpreende. “Ah, tem dois de que gosto muito. O sobre a canoa de casca feita por uma determinada tribo de Mato Grosso que precisava de canoa leve para pescar e para isso usa a casca do jatobá.” Foram necessários 11 anos da idéia à realização, por motivos que variaram da falta de dinheiro à dificuldade de obtenção de autorização da Fundação Nacional do Índio (Funai).
A segunda reportagem deveu-se ao acaso. Zé Hamilton estava fazendo uma matéria sobre a influência lunar na agricultura e precisava pegar uma imagem de uma lua nascendo num penhasco. “Aí um cara que era fonte da reportagem da lua me disse: ‘Ah, na fazenda do meu pai tem. Ele é velhinho, lá no interior’. E lá fomos nós à fazenda ver o penhasco. Quando vi o pai dele, falei: ‘Ah, não. A matéria é o pai dele’. Era uma fazendinha pequena, mas muito bem cuidada. Tinha monjolo, moinho, rego-d’água, jaracatiá (uma fruta), uma pequena usina elétrica movida a água, um pomar bem arrumadinho de forma que tivesse três frutas maduras qualquer dia que fosse lá. Na hora de tratar das galinhas, ele pegou a bacia de milho e ‘pi pi pi pi pi’, juntou aquela galinhada.
– Zé Bilico – o apelido dele é Zé Bilico -, você tem muito galo.
– Não, galo só três, o resto é capão.
“Então descobri que ele mantém ainda o costume de capar o galo. Você sabe por quê? Antigamente as fazendas eram auto-suficientes em alimentação, só compravam sal e querosene. A família mineira gosta muito de quitandas, sequilho, broa, bolo de fubá, tudo depende de ovo de galinha. É um ingrediente indispensável para a fazenda antiga. Se as galinhas entrarem todas no choco, vão ficar 21 dias chocando, aí nascem os pintinhos e vão ficar mais 20 ou 30 cuidando dos pintinhos. Nesse período ela não bota e a fazenda fica sem ovo. Alguém descobriu que, capando o frango jovem, no dia seguinte ele assume a lida da galinha desde chocar o ovo até criar os pintinhos, liberando a galinha desse trabalho. Quem capava os galos lá era uma mulher interessantíssima, Catarina. Com lâmina de barbear, daquelas fininhas.
– Qual a hora de capar o galo, Catarina?
– Olha, o frango cantou uma vez, tá bom, eu pego e capo.
– E um galo já com espora, não pode capar?
– Não. Ele morre de paixão porque já conheceu galinha.
“E foi uma coisa depois da outra. Quando termina a reportagem, estou na sala do Zé Bilico, onde há várias fotos na parede.
– Quem é esse?
– Ah, é meu avô e minha avó.
– E esse? – Ah, minha mãe quando estava noiva provando o vestido.
– E esse botinudo?
– Ah, esse era eu quando tinha 12 anos.
“Aí vem uma foto moderna com um menino de uns 8 anos.
– E esse aqui, Zé? – pergunto.
– Esse é meu filho.
– Como, Zé, você está com 84 anos.
– Aqui só capa o galo – conta Zé Hamilton, caindo na gargalhada.
“Ele era uma figurinha inacreditável. E tava com mulher nova porque a dele tinha morrido. Ela era 50 anos mais nova e tratava dele com muito carinho e respeito.” Se José Hamilton tem um dom, não há dúvida, é o de ter nascido contador de histórias. Aliás, de pequeno, em Santa Rosa de Viterbo, quando acontecia algo na cidade ninguém o segurava até que ele fosse ver e voltasse com todos os detalhes. Verdade seja dita, Zé Hamilton ainda conserva o entusiasmo do menino curioso, que quer escutar tudo de perto para contar as novidades aos outros.
Um autor versátil
José Hamilton Ribeiro é mais conhecido pelos títulos jornalísticos, como O Gosto da Guerra, de 1969, reeditado em 2005 pela Editora Objetiva. Ou O Repórter do Século, lançado em 2006 pela Ediouro, que reúne as sete reportagens que ganharam prêmios Esso, além da famosa matéria sobre a dramática cobertura no Vietnã. Contudo, sua produção evidencia o escritor versátil que é. Há títulos de literatura infanto- juvenil, como Kadiuéu, a Vingança do Índio Cavaleiro, Sr. Jequitibá: o Dia em que Seu Rosa Falou e Pantanal, Amor-Baguá.
Este último, dos anos 1980, que fala de caçadas de onça, remete a uma das bandeiras que levanta ao longo de sua vida: a defesa do ecossistema localizado na porção brasileira do Pantanal, no sul de Mato Grosso e no noroeste de Mato Grosso do Sul.
Os livros mais recentes refletem sua paixão pelo campo. É o caso de Os Tropeiros, da Editora Globo, um diário do programa especial levado ao ar pelo Globo Rural. Em Música Caipira, o jornalista faz um monumental resgate histórico das 270 maiores modas de todos os tempos. Pena que, por uma questão de direitos autorais, as letras não puderam ser registradas na íntegra. Para fazê-lo, entrevistou 100 pessoas. Tem até títulos mais específicos, que ele não menciona na sua cronologia oficial, como O Cavalo Árabe no Brasil, escrito em 1979 para a Associação Brasileira dos Criadores do Cavalo Árabe.
Os dois títulos mais curiosos dessa lista “oculta” são Os Três Segredos que Fizeram o Político Mais Votado, da Editora Nossa Cultura, de 1987, sobre o governador Franco Montoro, e o enigmático Deixem-me Ser Eu (SN, 1968), livro sobre escolas vocacionais que pode ser encontrado na seção de pedagogia de alguns sebos.
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