Depois de jantar, percorrer seis bares abarrotados de gente, fazer compras numa loja que fecha às 2 da manhã, olho para o relógio que marca 4 horas da madrugada. Reflito rapidamente se ainda tenho tempo de comprar um livro naquela livraria que não tem hora para fechar. Já estou querendo declarar a noite por encerrada quando lembro de uma entrevistada que horas antes me dizia: “Olha, Simone, se você quiser é possível tomar uma vodca às 10 da manhã”. Não, eu não estou em Nova York, a cidade que nunca dorme. E nem gosto de vodca. Esta é apenas a minha primeira noite em Lisboa, 200 anos depois da fuga de dom João VI e sua corte para o Brasil.
Cheguei à capital portuguesa para fazer a viagem contrária à do rei. Eu vim determinada a descobrir Lisboa. Tentei me livrar da bagagem cheia de idéias preconcebidas e de piadas sobre os portugueses que nós brasileiros cultivamos. Queria me deixar surpreender. Mas, afinal, o que surpreende um brasileiro que aterra (para usarmos o português de Portugal) na Lisboa de 2008? “Falta muita coisa em Lisboa, mas noite não é uma delas”, anuncia Joana Girão, 31 anos, uma das três sócias do Purex, um dos badalados bares das ladeiras do Bairro Alto. “E pode escrever aí”, continua a animada Joana, “que o Bairro Alto tem a maior concentração de bares por metro quadrado da Europa.”
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No Purex, os lustres são feitos de palhinha (canudinho em “brasileiro”), as cadeiras são bancos de autocarros (ônibus) e a animação é tão universal que a MTV da Indonésia resolveu conferir e o escolheu para encabeçar a lista dos melhores bares da Europa. Joana, que podia dar um curso sobre a noite lisboeta, explica: depois que os bares fecham, todo mundo vai para a Lux, a discoteca que está entre as dez melhores do mundo. Um dos sócios da Lux é o ator americano John Malkovich, acrescenta Joana, orgulhosa do caráter cosmopolita da cidade. “E depois temos os after hours, os bares que abrem às 6 ou 7 da manhã e só fecham lá pelas 11 da manhã.”
A partir das 3 da manhã é que os lisboetas saem para dançar, explica o músico angolano Kalaf Ângelo. Aos 30 anos, Kalaf e os músicos do Buraka reinventaram o ritmo das ruas de Luanda conhecido como kuduro para os ouvidos ocidentais. O resultado é que a música, até então só conhecida nos clubes africanos de Lisboa, saiu do gueto, arrebatou as pistas das discotecas, e chegou às ilhas britânicas, onde conquistou o reinado em Londres. “Ninguém sabe o que é Angola, ou Lisboa, acham que aqui só tem fado. Hoje, todos nós somos influenciados pela cultura americana, todos os dias.
Aos 30 anos, sou o resultado da influência do rap, de Hollywood, do Rambo, da Madonna e da MTV. O som lisboeta é assim: miscigenado, de uma Lisboa inserida num contexto contemporâneo. O kuduro, mistura de ritmos como kizomba, semba, zouk house e tecno, mostra esse outro lado que não aparece no cartão-postal. É como o funk, diferente dos ritmos que vêm do Brasil. Não é samba, nem bossa nova, nem Copacabana, nem garota de Ipanema”, filosofa Kalaf. “Lisboa é um espaço para exercitar aquilo que a geração dos meus pais não conseguiu expressar na língua portuguesa, com todos os seus sotaques e ramificações, por causa dos 30 anos de guerra em Angola”, conclui Kalaf. “Mas Lisboa está disponível para transformações, misturas, miscigenações.”
É madrugada e penso nas palavras de Kalaf ao folhear livros numa antiga fábrica de metralhadoras e munições que abriga a livraria mais charmosa de Lisboa. Não estou sozinha. Ao meu redor pelo menos 20 mil livros e centenas de pessoas, com copos à mão, folheando outros livros, jantando, conversando, vendo exposições, performances, lançamentos, shows de música, concertos, conferências nos 700 metros quadrados do casarão da Fábrica do Braço de Prata. “Já vendemos livros às 5 da manhã, e já saí daqui às 8 da manhã”, conta José Pinho, dono da livraria Ler Devagar.
Ele e Nuno Nabais, dono da livraria Eterno Retorno, resolveram juntar leitura a outras atividades e criaram um novo conceito de livraria e espaço cultural. “Hoje os livros viraram mercadoria, não são mais considerados instrumento de saber”, continua José. “Se um livro não é vendido em um ou dois meses, o título some das livrarias. A menos que seja um best-seller como os do Paulo Coelho, vai parar num depósito de livros. O que nós fazemos é resgatar e dar vida aos livros que estão nos armazéns das editoras. A idéia era transformar a Fábrica do Braço de Prata, que fica longe do centro, no centro da cidade. E conseguimos.” Por aqui passam em média de 200 a 500 pessoas por noite. “O recorde foi 1.200 numa única noite”, revela José Pinho.
Ao percorrer as diferentes salas, batizadas de Simone de Beauvoir, Nietzsche, Deleuze, esbarro em Nuno Nabais, professor de filosofia e um dos maiores especialistas em Nietzsche. Aqui os sócios fazem tudo como numa cooperativa. “E não cobramos cachê de nenhum artista ou escritor”, acrescenta com orgulho Pinho. Ele admite que nem sempre o que traz as pessoas para a livraria são os livros, mas o ambiente, o jantar, o encontro com amigos Mas, pelo menos na minha passagem por Lisboa, pude testemunhar que, em algum momento mágico da madrugada, elas acabam “se encontrando” com um livro. “O viajante não encontra o que procura, mas o que encontra”, sentencia o escritor e jornalista Miguel Sousa Tavares.
Desde cedo sua mãe, a poetisa Sophia de Mello Breyner Andresen, lhe ensinou: “Miguel: viajar é olhar”. E Miguel viajou olhando Portugal e o mundo. Algumas viagens, inclusive pelo Brasil, viraram o livro Sul Viagens. Mas foi a sua primeira viagem pela ficção, Equador, que o fez bater recordes em Portugal. A tiragem do livro ultrapassou os 300 mil exemplares. “O brasileiro que está à procura da terra da avozinha vai se surpreender e muito. Em termos de comportamento sexual, o país mudou radicalmente nos últimos 20, 30 anos; a liberalidade de costumes é evidente e hoje Portugal é o país da União Européia que tem mais mulheres trabalhando fora.”
Sousa Tavares, cujo novo livro, Rio das Flores, com lançamento no Brasil previsto para maio, conta a história de um português que vem parar em terras brasileiras na primeira metade do século XX, se impressiona com a quantidade de portugueses que hoje viajam para o Brasil. “Em qualquer vilarejo do interior sempre encontro um português que acabou de chegar do Brasil.” O responsável por essa avalanche de turistas portugueses é um brasileiro. Fernando Pinto deixou a Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, há oito anos, para se tornar o presidente da TAP.
A TAP pode ser considerada hoje a versão do século XX das naus portuguesas. É a companhia aérea estrangeira com mais vôos para o Brasil: são 66 semanais, para oito cidades. “As praias do Nordeste hoje se tornaram as mais importantes para os europeus”, afirma sorrindo Fernando Pinto. “Havia uma necessidade de ligação direta entre a Europa e o Nordeste. Turistas portugueses e de toda a Europa começaram a descobrir outro Brasil fora do eixo Rio-São Paulo.” “Abra os seus horizontes” é a nova campanha publicitária anunciando o vôo direto de Lisboa para Belo Horizonte.
Cerca de 60% das passagens são compradas em Portugal ou em outros países da Europa. Os brasileiros somam 40%. “No início, as passagens vendidas no Brasil correspondiam apenas a 20% do volume de vendas. Os brasileiros que visitam Portugal se surpreendem com um país moderno, diferente do que imaginavam, e a notícia vai se espalhando. Eu e minha família estamos completamente adaptados. Minha filha de 18 anos até namora um português. Eu continuo andando de ultraleve e também de planador, me sinto em casa.” “Lisboa é a antítese da imagem que os brasileiros têm de Portugal, que é a do português comerciante de tamancas, homem simples que foi para o Brasil. Lisboa é uma cidade contemporânea, culturalmente dinâmica e aberta”, garante o curador brasileiro Paulo Reis.
Em 2000, ainda vivendo no Brasil, organizou a exposição dos 500 anos do descobrimento Um Oceano Inteiro para Nadar. Depois se mudou para Portugal, onde faz a ponte entre artistas portugueses e brasileiros. “Não existe tanto oceano assim que nos divida”, sorri Paulo. “Para mim, Portugal tem ao mesmo tempo um caráter nostálgico e um projeto de futuro. Como brasileiro, me pego vivendo reminiscências de um passado num novo contexto.” Brasileiro de além-mar “Quando cheguei a Portugal em 1991, depois das 8 da noite Lisboa parecia uma cidade fantasma”, lembra o publicitário brasileiro Edson Athayde. “Se você visse um homem na rua de bermuda e chinelo ou era brasileiro ou holandês. Um português nunca saía assim. Roupa era só preta. Cantar alto no meio da rua, nem pensar.”
Athayde introduziu o conceito de marketing político em Portugal, que na época “tinha poucos jornais e revistas, dois canais de TV, ambos do Estado, e apenas um humorista”, recorda sorrindo. Nesses 17 anos ele testemunhou as mudanças que a sociedade atravessou, que são conseqüência em grande parte da entrada do país na União Européia. Em 1995, Athayde liderou a campanha publicitária vitoriosa do socialista António Guterres ao governo. O símbolo era um coração. Lembra da resistência ao uso do humor no marketing político, pois havia sempre o argumento de que “os portugueses eram muito sérios”.
Para Edson Athayde, um carioca se sente em casa em Lisboa: as pedras portuguesas, as ladeiras, o calçadão, a tasca, que é o nosso boteco. Já um paulista acha tudo pequeno e antigo. Mas Athayde vai avisando aos brasileiros: quem estiver pensando que Lisboa é Ouro Preto vai se surpreender. “Aqui há um pouquinho de Ouro Preto. Mas Ouro Preto só existe no Brasil. O que vai impressionar um brasileiro é a diversidade que se encontra a 30 minutos de distância. Pode-se ir a Expo, o complexo futurista do moderno bairro de Lisboa construído para a Expo 98 onde antes existia um pântano, e achar que se está em Marte. A 30 minutos de distância também se encontram os castelos de Sintra. Para mim, a grande mudança veio com a Expo em 98, que abriu a cidade para o rio. Antes não havia vento, horizonte, ar; agora há tudo isso.” “Bem sei que há ilhas ao sul e grandes paixões cosmopolitas Se eu tivesse o mundo nas mãos, trocava-o, estou certo, por um bilhete para a rua dos Douradores.”
À luz do dia, segui o conselho de Fernando Pessoa e peguei meu bilhete para a rua tão descrita e escrita pelo poeta português no seu Livro do Desassossego, tentando imaginar as diferenças e semelhanças da Lisboa de hoje com aquela de Pessoa. “A Lisboa que Fernando Pessoa viveu entre 1910, o ano do fim da monarquia, e 1926, que marca o início da ditadura de Salazar, era uma Lisboa mais variada e aberta a outras idéias, repleta de anarquistas, feministas, homossexuais. Nesse sentido mais parecida com a Lisboa de hoje do que com a Portugal estagnada e fechada dos mais de 50 anos da ditadura salazarista”, afirma o historiador Rui Tavares.
Para nossa entrevista, Rui escolheu um café junto à praça e ao Convento do Carmo, onde eclodiu em 1974 a Revolução dos Cravos, ou o “25 de Abril”, como se referem os portugueses ao dia em que a ditadura foi derrubada. Rui, que nasceu em 1972 e com 15 dias foi levado pela mãe para visitar o tio preso por se opor a Salazar, fala com paixão da Portugal pós-ditadura. “Antigamente as realidades política, social e familiar eram estáticas. Você só poderia ser um engenheiro se o seu pai fosse engenheiro. Hoje é comum encontrarmos artistas, jornalistas, filhos de taxistas ou de operários… Isso era impensável na ditadura.” O escritor Pedro Mexia nasceu no mesmo ano em que Rui Tavares.
Eles representam um fenômeno recente em Portugal: a explosão dos blogs, que para Pedro significa o desbloqueio dos meios de comunicação para uma nova geração. “Eu e o Rui viramos colunistas de jornal por causa dos nossos blogs. Em Portugal todo mundo lê blogs, é como ler jornal, e os jornais repercutem os blogs. Na Itália, França ou Inglaterra não é assim.” Pedro Mexia, que tem idéias políticas opostas às de Rui, começou com um blog “contra a hegemonia intelectual da esquerda”.
Pedro sorri ao dizer que ele e Rui torcem pelo mesmo time e vão ao jogo do Benfica juntos. Conviver com ideologias distintas com naturalidade é para Pedro Mexia um dos maiores resultados dos 30 anos de democracia. Na Portugal de antes do 25 de Abril, seu mundo e o de Rui nunca se cruzariam. “Não é que não seríamos amigos: nem nos conheceríamos”, garante Rui. A Lisboa de sete colinas é a Lisboa de ruelas e ladeiras do Bairro Alto, Chiado, Baixa, Alfama. Perco-me nos pensamentos e chego atrasada à casa dos Reis.
O arquiteto Pedro Reis, 40 anos, está preparando o almoço. Pedro é um do 0,8% de homens portugueses (cerca de 30 mil numa população masculina de 3,7 milhões) que cozinham sem ajuda da mulher, Bárbara. “Este é meu território, elas não entendem”, reclama Pedro ao ver a mulher e as filhas Francisca, 5 anos, e Madalena, 2 anos, invadirem “seu território” em momentos de grande concentração. O assédio é tanto que Pedro já ensinou Francisca a descascar cenouras. Bárbara e Pedro pertencem à geração que já aprendeu a ler e a escrever na democracia. O casal escolheu viver numa casa pombalina – construída depois do terrível terremoto que arrasou a cidade em 1755, parte do grande plano de urbanização comandado pelo Marquês de Pombal.
Vivem na Sé, aos pés de Alfama, o bairro mais antigo de Lisboa. O arquiteto Pedro preservou o assoalho de madeira de 300 anos e tudo o que encontrou ainda intacto e adicionou elementos ultramodernos, como o chão de bronze na cozinha, transformando os 265 metros quadrados da casa, da época em que a corte ainda não se mandara para o Rio de Janeiro, em uma obra de arte. O resultado “de uma intervenção contemporânea num edifício do século XVIII” fez a casa virar reportagem no jornal italiano Corriere de la Sera, que considerou o projeto “um exercício de estilo, ou melhor, o exercício de um estilo de vida”.
O casal Reis representa esse novo estilo de vida, de uma geração que nasceu na ditadura, mas que cresceu na democracia. “Acho que o turista brasileiro se impressiona com a sofisticação e a urbanidade de Lisboa, com a presença de gente de todas as cores e músicas. Isso mudou muito da minha juventude para cá”, diz Bárbara Reis, editora de cultura do jornal O Público. “Há uns cinco, seis anos, fui visitar a universidade onde estudei e me surpreendi ao ver estudantes de tantos lugares diferentes. Na minha época, só havia dois alunos que não eram portugueses. A minha filha Francisca chegou outro dia da escola dizendo que tinha uma amiga de ‘Caldo Verde’ (Cabo Verde), e outra noite fui buscá-la na casa de uma amiguinha muçulmana. Era o fim do Ramadã, o mês sagrado para os muçulmanos, e acabamos celebrando com toda a família.
Antigamente não se viam casais mistos nas ruas; hoje, aqui em Alfama, a essência de Lisboa, você vê indianos e ucranianos no meio dos fadistas. Ainda mais do que a minha geração, a das minhas filhas vai se beneficiar com essa diversificação.” “Lisboa reencontrou sua alma com esta recente onda de imigração, não esqueça que a cidade já foi a capital mais negra da Europa”, lembra o historiador Rui Tavares. Brasileiros, ucranianos, cabo-verdianos, russos, angolanos. Eles estão mudando a cara de Portugal. Os brasileiros são os mais numerosos. “São quase 70 mil legais, mas estima-se que com os ilegais esse número chegue a 120 mil”, esclarece o embaixador brasileiro, Celso Marcos Souza. A maioria vem do Centro-Oeste e do Paraná. “Em cidades como Ericeira”, explica, “os brasileiros representam cerca de 35% da mão-de-obra.” É quase impossível entrar numa loja, café ou restaurante em que os funcionários não sejam brasileiros.
“Os brasileiros são muito mais simpáticos que os portugueses e, afinal, estrangeiro é estrangeiro, brasileiro é diferente, é como se fosse parte de nós”, afirma a jornalista Dalila Carvalho, que insiste em me levar a Mafra, o palácio de onde saiu, ou fugiu, dom João VI a caminho do Brasil. “Este palácio foi construído com a riqueza tirada do Brasil”, explica Dalila. “Em relação ao Brasil, não temos complexo de culpa como temos em relação aos países africanos, onde as guerras coloniais foram muito violentas e recentes, e a independência ocorreu há menos de 40 anos.” Como quase todos os portugueses que entrevistei, Dalila afirma que a música e as novelas brasileiras criaram uma familiaridade com o Brasil e com “o brasileiro”, como os portugueses chamam carinhosamente a nossa língua, o nosso jeito de falar. E o rosto de Dalila se ilumina como o de uma criança ao falar do Brasil. “Quando vou ao Brasil, lembro da minha infância, são coisas sutis como os vasos de flores nas varandas, a forma do bolo na hora do café, o formato das portas, existe uma familiaridade, um regresso mútuo às origens.”
É nessa identificação que apostam Filipa Machaz e Leonor Antunes. Elas não se conhecem, mas têm em comum a admiração pelos artistas brasileiros. Filipa coordena as exposições da galeria Bernardo Marques. De Lá para Cá e de Cá para Lá foi a primeira de uma série que vai trazer até o fim do ano artistas brasileiros como Nuno Ramos, Iole de Freitas e Rubens Ianelli. Já Leonor Antunes é, nas artes plásticas, a grande revelação portuguesa no exterior. Suas instalações são expostas em Paris, Londres, Berlim.
Depois de um jejum de quatro anos, Leonor voltou a expor em Lisboa. A artista se divide entre Berlim e Lisboa e faz o caminho de dom João VI ao Brasil, em busca de inspiração e para conhecer obras de artistas que admira, como Oscar Niemeyer, Helio Oiticica, Cildo Meirelles, Lygia Pape. “Os brasileiros têm esta noção de que qualquer coisa pode ser transformada em outra. São ágeis, intuitivos, usam materiais diversos. Apesar das mudanças, para mim, Portugal ainda é claustrofóbica.”
O país ficou pequeno para Lara Torres, 30 anos, uma espécie de arqueóloga da moda. Depois de trabalhar um ano com o estilista inglês Alexander McQueen, Lara voltou para Lisboa determinada a pesquisar o vestuário e a memória. O ateliê parece o de um artista plástico: camisetas levam banho de porcelana, moldes de gesso, látex, tudo se mistura. A memória está na textura e a roupa às vezes vira escultura.
Lara mostra uma jaqueta de látex que demorou seis meses para ficar pronta. “Não daria para sobreviver com o que vendo em Portugal”, admite Lara. No Japão, a estilista é um sucesso. “As roupas mais complicadas, que eu achava que nunca venderia, são as de que os japoneses mais gostam.” Lara também vende para Espanha, Áustria e Alemanha. E resolveu se instalar em Berlim por uns tempos. “Portugal ainda é uma estrutura conservadora e às vezes é difícil as pessoas entenderem que o que quero é aproximar o público da roupa que veste, pensar a moda com uma abordagem diferente, afinal, antes mesmo de falar já estamos vestindo algo. A moda sempre reflete o peso da memória, da história”, conclui.
Estilistas jovens como Lara são lançados pela ModaLisboa. “Quando começamos, em 1991, no circuito da moda só existiam Paris, Milão, Nova York e Londres”, explica a presidente da ModaLisboa, Eduarda Abbondanza. “Lisboa não era rota de nada. Nós fomos a primeira fashion week periférica. Hoje existem mais de 40 em todo o mundo.” A ModaLisboa, uma associação sem fins lucrativos, quer se profissionalizar e não apenas lançar talentos como Lara Torres, mas tornar a moda um bom negócio para Portugal. “A moda aqui sempre passará pela internacionalização, já que somos um país pequeno, com 10 milhões de habitantes.” Coordenadora de Têxteis da ModaLisboa, Vera Herédia Colaço chama a minha atenção para a quantidade de estilistas brasileiros em Portugal. “Nunca houve tanta oferta de marcas brasileiras. O Brasil hoje na moda influencia a tendência mundial, com suas padronagens florais, casuais, e um estilo relaxado. É o jeito descontraído de ser que se reflete em tudo”, observa. “Já conosco, os portugueses, é sempre este papo de saudade”, interrompe animadamente Eduarda Abbondanza. “Uma vez uma jornalista estrangeira me entrevistou e a cada pergunta ela indagava se eu não sentia saudade. Até que me dei conta desta tal mania de saudade, saudade, saudade, por que esta carga? Por que este drama? Saudade, que saudade?” “Tenho é saudade do que está por vir, do amanhã”, contra-ataca o músico angolano Kalaf Ângelo, filósofo das noites lisboetas, sem imaginar que, do outro lado da cidade, o português Antonio Câmara já está desbravando o futuro.
Câmara começa a entrevista lembrando o vínculo com o Brasil. Ele é descendente direto dos duques de Bragança, “os primeiros a irem para o Brasil”. Tomé de Sousa, primeiro governador-geral do Brasil, era parente por parte da família do pai. E por parte de mãe, a Marquesa de Santos. Não resta dúvida de que o espírito desbravador está no sangue. No fim da década de 1990, o ex-professor visitante do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) chamou seus alunos portugueses e criou a Y Dreams. A média de idade na empresa é de 31 anos. A Y Dreams começou desenvolvendo projetos pioneiros de interatividade com celulares. Seu grande trunfo são os produtos que vão surgir da computação invisível.
O exemplo que vi é simples: você entra num bar, simpatiza com alguém e, depois de trocar olhares, o número do telefone vai surgindo na camiseta dele ou dela. A Y Dreams ainda não pode divulgar o vídeo com a demonstração, já que está se tornando a primeira empresa do mundo a patentear essas invenções para o mercado. Mas dá para intuir que, em matéria de tecnologia, nem portugueses nem brasileiros vão precisar esperar mais 200 anos para descobrir o que o futuro nos reserva.
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