A culpa é do deserto

As placas aparecem no deserto como miragens. Estão lá, mas são mentiras. Na estrada interestadual I-10, no enorme vale aos pés das montanhas Dragoon, no estado americano do Arizona, sinaliza-se limite de velocidade máximo de 65 milhas por hora (104 quilômetros por hora, mais uns quebrados). Outro anúncio diz: “Velocidade controlada via aérea”, ou seja, por aviões ou helicópteros. E eu pensando junto ao volante: “Esta gente não consegue localizar Osama bin Laden viajando num burrico. Vão me pegar a bordo de um Mustang 2008, com 210 cavalos no motor?”. Yeah! Riiight!, como dizem aqui. Mesmo assim, vou fingindo acreditar na cascata. Deve ser a fome. Antes de passar pela cidadezinha de Willcox, outro sinal: “Visite a Fortaleza de Cochise”. As serras que serviram de quartel-general para o famoso guerreiro Chiricahua-Apache. O lugar era uma espécie de Tora-Bora, no Afeganistão, esconderijo do Bin Laden. Só que esta daqui foi a morada de alguém de muito melhor caráter. Finalmente o anúncio que me interessava: “Restaurante Mama Mia, comida italiana”.

Paro, no estacionamento está pendurado o que restou de uma piñata: metade da carcaça de um burro em cores desbotadas. É como se o bicho tivesse sido enforcado e deixado à sanha dos abutres. Entro no restaurante italiano e dou de cara com um chiricahua-apache. Pela expressão facial, seu emprego anterior foi o de porteiro de charutaria: olhar num horizonte inexistente, traços talhados à faca, como se esculpidos em madeira. Está atrás do balcão, em meio às moscas em fiesta. O “Mama Mia” deveria chamar-se “Porca Pipa!”, ou melhor, “Manaja la Miseria!”. Pergunto: “Tem pizza?”. Ele aponta com o queixo uma vitrine no cantinho. Lá estão quatro tortillas de milho, cobertas por queijo e o que, de certo ângulo, parece que foi molho de tomate. Isso quando foram preparadas, há cerca de 200 anos, pelo chef Cochise. Dou “¡Adiós!” às moscas e ao apache-peninsular, que não abriu o bico.

Lá dentro, na sombra, estava 42 graus. Fora são, no mínimo, 400 graus. Fome e calor: resumo do dia-a-dia de Cochise e seus homens. Nesse estado, não é de admirar que ouçam os mortos. E por que não? Eu mesmo estava indo fazer matéria sobre o lendário “Portal de Lordsburg”, que dizem ser um vortex. Ou seja: um rasgo no tecido de tempo/espaço, e por onde entram e saem coisas estranhas – inclusive assombrações. Ao meu ouvido, juro, veio a voz de Cochise (1815-1874). “Pau no Pony, moreno! Cara-pálida fala com língua de cobra: daqui até Lordsburg não tem Faca Longa. Com a gasolina a mais de US$ 4, tá todo mundo parado”. Ao que respondo: “Gracias, velho guerreiro. E se o senhor estiver em contato com o Caboclo Cobra Coral, mande meus respeitos. Tchau e bênção”.

Dos alto-falantes do Pony jorra a voz rouca de Billy Gibbons, do ZZ Top: “Last night I saw a naked cowgirl / She was floating across the ceiling”. Daí para a frente foi pedal no assoalho do Mustang, na disparada dos 210 cavalos, com 110 milhas por hora no marcador, e uma sobrinha de velocidade, para caso de emergência. Os delírios só passaram na mesa do restaurante El Charro, em Lordsburg, com a força de quatro burritos, dois de carne e dois de galinha. O deserto, sabe, me deixa assim: meio esquisitão.


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