Assalto moderno

A casa foi assaltada na manhã de segunda, quando a filha se preparava para ir ao colégio e a mãe aproveitava o tempo disponível colocando uma máscara restauradora de abacate. Ainda segurava a cuia com o creme verde quando foi surpreendida por um homem armado atrás do piano. “É um assalto, dona.”

A mulher levou as mãos ao alto, deixando cair a cuia e espalhando o líquido pastoso pelo tapete. “É persa, madame?”, ele perguntou. “Marroquino, moço”, respondeu a mulher, vendo a mancha se alastrar pelo desenho geométrico. O ônibus escolar buzinou lá em baixo, fazendo a filha aparecer  saltitante na sala, jogando os livros no chão, com o inusitado da cena. “Vai lá embaixo e diz que não tem ninguém em casa”, ordenou o ladrão à dona da casa. “Posso lavar meu rosto primeiro, moço?”
O ladrão ameaçou com o revólver, o que fez com que ela descesse imediatamente as escadas para gritar no portão: “Não tem ninguém em casa”.
O ônibus explodiu em uma gargalhada infantil de gengivas intumescidas em segundas dentições. “Olha o Hulk! Olha o Hulk!”

A filha emburrou. “Nunca mais boto os pés naquele colégio.” E o ladrão ordenou, apontando o 38 para a menina: “Cala a boca você também!”. A menina lhe estendeu a língua, assim que ele desviou o olhar para a mesinha de vidro. “Esse cinzeiro é de prata?” “Metal, moço”, respondeu a dona de casa, com a máscara de abacate lhe repuxando o rosto como uma plástica malfeita.

O ladrão recolocou o cinzeiro na mesinha, de mau humor. “Onde estão os dólares, dona?” Ela respondeu: “Os últimos que eu tinha, troquei para colocar aparelho nos dentes da menina”. Ao que a filha resmungou: “Pronto. Agora a culpa é minha!”.

O telefone começou a tocar, enquanto o ladrão remexia, desanimado, as gavetas da cômoda. “Diz que não tem ninguém em casa!” “Não tem ninguém em casa”, respondeu a mulher como um papagaio trincado. A filha tapou a boca, escondendo um risinho de deboche. “E as joias, madame?” “No prego, moço”, respondeu ela, com a boca prendendo na última sílaba de cada frase, formando um diálogo completamente fora de sincronia.

A empregada meteu a chave na porta da cozinha, assobiando uma lambada que se transformou em grito histérico vendo a patroa desgrenhar-se em uiara, pingando seus cabelos verdes encostados no revólver. “E a aliança de ouro, madame?” Por trás da máscara mortuária, a mulher respondeu: “Joguei pela janela na última briga com meu marido”.

O ladrão ainda insistiu em um perfume em cima da penteadeira, tentando fazer um bom negócio. “É francês?” Ao que a dona de casa, antes de petrificar-se para sempre em busto de jade, informou: “Pa-ra-guai-o”.

“Então, manda ao menos servir um cafezinho”, suplicou o ladrão, exausto, caindo na poltrona de veludo. “Então me empresta um dinheirinho, moço, que está faltando açúcar.”


*É atriz, atuou em mais de 50 filmes, 15 telenovelas e minisséries, além de peças de teatro. Também é cronista do Jornal do Brasil e autora do livro O Quebra-Cabeças (Imprensa Oficial, 2005), uma compilação de crônicas publicadas pelo jornal.


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