Uma sexta-feira comum em Nabi Saleh, na Palestina

Fotos Multishow/Divulgação

 

Lendo as notícias desta semana, me deparei com um vídeo chocante de uma jovem gritando com soldados israelenses. Eu parecia já ter ouvido essa história antes e quando me dei conta, eu já tinha estado naquele lugar.

Queria aqui dividir com vocês um pouco do que vivi nesse vilarejo e as minhas impressões.

Este ano tive a oportunidade de dar uma “volta ao mundo” gravando um programa para o canal de TV fechada Multishow, mas eu não sabia o quanto tudo o que eu viveria lá mudaria a minha maneira de ver o mundo. No final de outubro estive em Israel, e na cidade de Tel Aviv conheci um documentarista inglês chamado Sam que, conversando comigo, disse que iria a uma manifestação na Palestina no dia seguinte. É claro que isso não estava no itinerário nem na programação do nosso programa de TV, mas por interesse pessoal eu fui. Fui para ver de perto e entender quais são as dimensões dessa questão que está sempre no centro das discussões sobre direitos humanos, política, mundo, e que me causa indignação e tantos questionamentos.

Por mais informada que eu estivesse não tinha ideia do que ia encontrar por lá. Depois de mais de 4 horas de trânsito – nem tanto pela distância, mas pelas barreiras que tivemos que enfrentar – chegamos a esse vilarejo de 500 pessoas, Nabi Saleh. Logo que desci do Sherut (uma espécie de táxi coletivo), sem nem mesmo uma visualização do lugar onde eu estava, já tivemos que sair correndo por conta do tanque do exército israelense que estava se aproximando. Subi a rua e entrei em outra ruazinha de terra, onde encontrei algumas meninas, a mais velha de 16 anos provavelmente. Muito intrigadas por verem uma menina tão diferente delas, com um sorriso no rosto como se aquilo fosse interessante e divertido. O tempo todo se escutava um estampido, que era de tiros de bala de borracha e de bombas de gás.

Uma das mulheres estrangeiras que estavam nessa manifestação, curiosamente israelense lutando ao lado dos palestinos, reprovou com certa hostilidade o fato de eu estar usando uma bermuda e pediu, em árabe, para a menina mais velha me emprestar uma calça. A menina muito gentilmente e bastante curiosa me levou até a casa dela, me deu uma calça e uma camiseta e me levou até o quarto. Tentei olhar tudo, absorver tudo o que eu podia daquele lugar tão diferente. As amenidades de meninas, a vaidade, os adesivos colados no espelho, os objetos coloridinhos, a organização do próprio quarto. Era tão distante e ao mesmo tempo tão parecido. Me troquei ao som incessante de tiros. Quando sai do quarto havia mais garotas e mulheres mais velhas me esperando, esperando para ver que criatura tão diferente havia aterrissado na casa delas, que pessoa estranha, com tatuagens, cabelo a mostra… A curiosidade que me tomou ao chegar ali era a mesma delas ao me olhar. Eu falava em inglês e elas em árabe, mas nada disso parecia impedir que a gente se comunicasse e se respeitasse. De fato, a pessoa mais incomodada com a minha roupa e a minha presença era a israelense que me mandou se trocar; as outras sorriam e pareciam querer me agradar, e eu a elas.

Voltei para a rua para acompanhar a manifestação, que na verdade consistia em jovens palestinos jogando pedras no exército de Israel e o exército revidando com balas de borracha, balas de chumbo revestidas de borracha e bombas de gás. Havia muitas crianças em volta e que claramente não estavam com tanto medo quanto eu. Quando a bomba de gás era jogada, as crianças faziam uma espécie de brincadeira de sair correndo e chutar a bomba para longe, para que o gás não viesse na nossa direção. E digo que era uma brincadeira porque elas riam e se provocavam durante todo o tempo. Isso já desconstruiu toda a noção de perigo que eu tinha e de repente eu já não sabia mais que riscos eu estava realmente correndo. Os mais ativos eram jovens, com os rostos na maior parte do tempo cobertos, jogando pedras no exército com uma espécie de estilingue; e os mais velhos, por assim dizer, se ocupavam em gravar toda aquela operação. Tudo aquilo me fascinava. A maneira natural com que eles enfrentavam tudo era muito diferente do que eu imaginava. Eles ouviam música, às vezes descansavam um pouco, conversavam e brincavam entre si, daqui a pouco voltavam a enfrentar o exército. Era uma relação muito diferente com o perigo.

Em um momento estávamos algumas garotas observando tudo como quem observa uma banda de rua no carnaval, umas crianças rindo e brincando ao nosso lado, e uma bomba de gás atirada levou a fumaça para onde a gente estava. Foi muito pouco, mas o suficiente para silenciar a todas, e de repente estávamos nós com os olhos ardendo, garganta ardendo, nariz ardendo, sem conseguir dizer nada e emitir nenhum som. Olhei aquela situação e aquele silêncio que a gente dividia. A gente dividiu o silêncio, o mal estar. Alguns segundos de paralisia. Alguns segundos de silêncio.

Fui voltando. Voltando para aquele vilarejo. Para aquele lugar inóspito, voltando para onde eu nunca tinha ido.

Aquele confronto durou algumas horas e quando chegou o fim da tarde o exército se retirou e as pessoas voltaram para suas casas. Eu e Sam (o documentarista inglês) fomos até a casa de uma família buscar nossas mochilas que eles tinham generosamente guardado para nós enquanto a gente se ocupava em explorar e entender o confronto. Fui muito bem recebida por todos na casa. Os mais velhos falavam inglês e nós ficamos conversando sobre tudo aquilo que eu tinha acabado de testemunhar. Eu parecia mais indignada e entusiasmada  em saber de tudo do que eles. Aos poucos eles foram revelando coisas muito mais chocantes do que eu tinha visto ali naquele dia. Me contaram que aquilo era recorrente na vida deles, que era só mais uma sexta-feira e que eles sabiam que não seria a última. Mostraram-me vídeos feitos em dias como aquele que eu estava ali, do exército cometendo atrocidades com a população. Me contaram que estão lutando para não serem expulsos de suas casas. Me contaram que naquela sala era raro quem já não tinha sido preso ou levado a testemunhar. No meio da conversa uma menina de 12 anos entrou na sala pedindo para usar o telefone, ela queria ligar para um amigo. Ela vestia uma camiseta rosa pink e uma calça verde; ela carregava uma máquina fotográfica e entrava e saia da casa com a independência de uma adolescente. Tenho uma irmã de 13 anos e disse a eles que minha irmã tinha o mesmo jeito de ser, e pedia as mesmas coisas. E é verdade.

Me serviram um café e levaram eu e meu amigo de volta à cidade de Ramallah, para voltarmos para casa. Voltei para Tel-Aviv no mesmo dia, e eu já não era mais a mesma.

Não estou aqui para discutir todo o conflito Israel-Palestina, porque seria ingenuidade da minha parte querer fazer isso dessa maneira. Mas apenas para colocar que vi de perto essas pessoas lutando pelo que elas acreditam. Esse dia não passou na TV, não morreu ninguém, eu não me feri, as crianças correram e brincaram de chutar a bomba de gás e mais uma sexta-feira se passou no vilarejo de Nabi Saleh.

Me impressiona a força com que as pessoas enfrentam as adversidades da vida, por mais que estejam em desvantagem. Longe, ou perto, são pessoas tão parecidas com a gente, com conflitos pessoais, familiares, políticos, mas querendo se manifestar. Querendo ser respeitadas. E acho isso louvável.

Sophia Reis é atriz e apresentadora. O programa Volta ao Mundo vai ao ar toda quinta, às 21h30, no Multishow

Sophia Reis se protege do gás lacrimogênio nas ruas de Nabi Saleh


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