Histórias da ditadura

Não tem sido fácil encontrar, na literatura produzida atualmente no Brasil, obras que tenham um bom enredo, que sejam bem escritas e interessem tanto aos chamados “leitores de fim de semana”, mais acostumados aos best-sellers, quanto aos leitores mais exigentes, familiarizados com livros considerados clássicos ou cults.

Na maioria dos casos, sempre falta às obras uma dessas características. Dessa forma, o livro pode ter uma boa história e ser bem escrito, mas o autor exagera nos experimentalismos linguísticos e formais; ou a obra poder ter uma linguagem simples e ser bem escrita, mas seu enredo ser frágil ou pouco interessante.

Isso não acontece com Anos Perdidos, terceiro livro do escritor e tradutor Marcelo Barbão, uma reunião de duas novelas que têm ditaduras como panos de fundo. No caso de Cartas, a primeira novela, são os anos sombrios na Argentina que vêm à baila. Em Visões da Serra, é a ditadura brasileira que espreita a narrativa. E talvez não haja termo mais apropriado do que “espreita”, para esse caso, porque nessa novela a ditadura brasileira é como um fantasma que ronda a história. Nela, um grupo de turistas espera o transporte que os levará ao hotel Visões da Serra, localizado em algum ponto na divisa entre São Paulo e Minas Gerais.

Visões da Serra intercala três narrativas: a ida dos turistas para o hotel, com o proprietário contando-lhes um pouco da história do lugar; a missão de um soldado do Exército incumbido de se infiltrar em uma comunidade alternativa, pois havia a suspeita de aquele ser um grupo de subversivos se preparando para a luta armada; e o reencontro desse soldado com seu superior, depois de passar oito anos desaparecido.

O grande trunfo de Barbão, nessa novela, é a sutileza com que ele vai amarrando as três histórias, culminando em uma revelação que encerra de maneira surpreendente a narrativa.

Já em Cartas não há tanta sutileza. Se Visões da Serra pode ser lida como uma metáfora para os vários assassinatos cometidos gratuita e injustamente durante a ditadura, Cartas é mais visceral, mais violenta e mais direta.

Também arquitetada em narrativas paralelas, Cartas se passa em épocas diferentes e seu enredo flutua entre quatro cidades: Recife, Nova York, Buenos Aires e Puerto Iguazu. O título se refere a dois tipos diferentes de cartas: uma, que a mãe de Eduardo, o protagonista, escreve para o filho pouco antes de morrer; as outras, de pôquer, e é durante uma partida em Puerto Iguazu que o destino de Eduardo começa a ser definido (revelar qualquer coisa além disso estragaria a leitura da obra).

Tendo como base fatos históricos – para citar dois exemplos, a Operação Condor (nome dado à coalizão entre Brasil, Argentina, Chile, Bolívia, Paraguai e Uruguai para capturar os opositores das ditaduras – leia mais a reportagem à página 60) à qual o autor faz referência em Cartas, e a apropriação de crianças nascidas em cativeiro – e misturando-os com ficção, Barbão construiu duas peças notáveis, relevantes pela forma, pelo conteúdo e por suas qualidades literárias.


Comentários

Uma resposta para “Histórias da ditadura”

  1. […] Publicada na revista Brasileiros (dezembro de 2012). […]

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