A vida sonhada de Carlinhos Vergueiro

NOVO ÁLBUM - O cantor e compositor Carlinhos Vergueiro acaba de lançar o CD Vida Sonhada

Entrevistar Carlinhos Vergueiro é como assistir a um show particular. Entre uma pergunta e outra, ele saca o violão, toca e canta. Enquanto isso, conta sua história com a mesma descontração com que joga futebol no campo do Polytheama, de Chico Buarque, no Rio de Janeiro, há mais de 30 anos. Em suas jogadas individuais, o cantor e compositor de 60 anos gosta de voleios – no palco e em campo, apesar de seus joelhos estarem meio “desafinados”. Após dois anos de shows e discos homenageando Adoniran Barbosa e Nelson Cavaquinho, ele acaba de lançar o álbum autoral Vida Sonhada. Em encontro com a reportagem de Brasileiros, Carlinhos falou do início da carreira, de sua relação com o Rio e São Paulo, do passado, do presente e, claro, de futebol.

Brasileiros – Qual seu primeiro contato com a música?
Carlinhos Vergueiro – Gosto de música desde que me entendo por gente. De música e futebol. Meu primeiro instrumento foi o piano. Meu avô, Guilherme Fontainha, pai da minha mãe, era professor de piano. Comecei a tocar com ele, aos 3 anos. Meu pai, Carlos Vergueiro, também tocava e cantava com charme. Ele fez muitas coisas, foi crítico musical, fundador do Teatro Brasileiro de Comédia, fez o primeiro filme da Vera Cruz, idealizou a Rádio Eldorado e foi o primeiro diretor artístico da TV Cultura. Minha mãe, Zilah, chegou a participar de corais, foi diretora do Balé de São Paulo, no Teatro Municipal. Também sempre esteve ligada às artes.

Brasileiros – Por que você abandonou o piano?
C.V. –
Por que piano exige muita dedicação e, naquela época, já gostava da boêmia e de futebol e ainda estudava. Não sobrava tempo. Meu avô achava que eu tinha talento para a música clássica. Mas sempre me interessei por todo o tipo de música e gostava muito da popular, especialmente samba. Depois, fui trabalhar na Bolsa de Valores. Meu pai me arranjou esse emprego porque ficava preocupado de eu não fazer nada. Mas sempre cantei, nunca tive inibição. Cantava as músicas das pessoas que admirava, sabia tudo de Cartola, Nelson Cavaquinho, Adoniran… E comecei a compor aos 16 anos.

Brasileiros – Você sempre quis ser músico?
C.V. –
Nunca imaginei me tornar artista. Queria ser jogador de futebol, mas não reconheceram meu talento (risos). Mas nunca deixei de jogar bola. Futebol me faz companhia, acompanho tudo de todos os times. Com 20 anos, eu me casei e, enquanto trabalhava na Bolsa, participava de festivais. Fui finalista de um festival universitário e, por conta disso, gravei um compacto com as músicas Só o Tempo Dirá, a finalista, e Bateu-se a Chapa, um samba de Assis Valente. Depois, participei de outro festival no Clube Alto dos Pinheiros, em São Paulo, em que fiquei em segundo lugar. Mais adiante, ganhei outro festival com duas músicas em parceria com João Garcia: Garra, a vencedora, e Poeta sem Versos, que ganhou a melhor letra. Nesse festival, conheci o argentino Fernando Falcon, que me levou para a gravadora Chantecler. Lá, gravei mais um compacto com as músicas do festival.

Brasileiros – Quando você foi para a Continental?
C.V. –
Quando Fernando Falcon virou o diretor da Continental. Lá, gravei meu primeiro LP, em 1974 – Brecha. Só nessa época saí da Bolsa e fiz meu primeiro show profissional, no Teatro de Arena Eugenio Kusnet. A partir desse disco, passei a viver exclusivamente da música. Além do show, apareci pela primeira vez na televisão e, um ano depois, a Globo organizou, no Teatro Municipal de São Paulo, um festival. Participei e acabei vencendo.

Brasileiros – Foi com Como um Ladrão?
C.V. –
Foi. O chamado Festival Abertura, que lançou muita gente. Vários ídolos meus participaram: Nelson Cavaquinho, Paulo Vanzolini, Hermeto Pascoal, Macalé, Mautner… Clementina de Jesus cantou um samba de Geraldo Filme de Souza, compositor paulista que eu admirava e, mais tarde, produzi o único disco da vida dele. Foi um festival de altíssimo nível, transmitido para o Brasil inteiro. Isso deu uma impulsionada na minha carreira.

Brasileiros – E depois, o que aconteceu?
C.V. –
Gravei meu segundo disco, Só o Tempo Dirá, com o samba que fiz para o Festival Universitário, de 1972. A frase “Só o tempo dirá” deixa a dúvida: “O que vai acontecer, será que o cara vai para frente?”. Gravei com a Velha Guarda da Portela e tive uma das primeiras brigas com a gravadora, porque acharam o coro desafinado e queriam outro coral. Bati o pé, disse que queria a gravação daquele jeito. Consegui. Em 1976, fui para a Odeon, quando fiz minha primeira parceria com um cara já consagrado, o Toquinho. Depois, comecei uma parceria com J. Petrolino, que dura até hoje.

Brasileiros – Houve outras parcerias?
C.V. –
Várias. Em 1977, gravei Porque Será, música que fiz com Toquinho e Vinicius de Moraes. Depois, gravei com Adoniran Barbosa e foi indo.

Brasileiros – Como você, Toquinho e Vinicius dividam o trabalho?
C.V. –
Porque Será fizemos em uma noite no apartamento do Toquinho, que ficava na rua Peixoto Gomide, em São Paulo. Saí de lá às 6 horas da manhã com a música pronta. Vinicius, ao acordar, fez uns ajustes. Esse trabalho foi uma honra, uma coisa maravilhosa… Aí, foram surgindo parcerias com Paulinho César Pinheiro, Eduardo Gudin… Mais tarde, fiz Torresmo à Milanesa, com Adoniran.

Brasileiros – Conta-se que vocês fizeram essa música em um boteco. É verdade?
C.V. –
Sim, fizemos em um boteco, de pé. Adoniran e eu já éramos amigos quando aconteceu essa música. Fizemos esse samba e ficamos um tempo sem falar nele. Um dia, Adoniran me ligou para dizer que Clementina queria gravá-lo. Adoniran, então, me pedia para ir à casa dele, em Cidade Ademar, para gravar uma fita, que seria enviada a  Clementina. Inicialmente, a música falava em dois bifes à milanesa, mas Adoniran pediu para colocar torresmo no lugar do bife. Perguntei o motivo. Ele falou: “Porque não existe”. Eu não discutia com ele. Gravamos e ouvimos a fita com dois torresmos, mas ele pediu para regravar, dessa vez só com um torresmo. Mais uma vez, quis saber por que: “Porque é mais triste”. Aí, ele trocou o verso e o nome da música passou a ser Torresmo à Milanesa.

Brasileiros – Adoniran era paternalista?
C.V. –
Nunca tive relações paternalistas, nem com ele. Adoniran gostava de mim por causa disso. Ele falava: “Duas gerações e os mesmos problemas”. Era uma coisa de igual para igual, embora eu tivesse muito respeito pelos mais velhos, não por uma coisa moralista ou de educação, mas porque aprendia com eles. E aprendi muito com Adoniran. Foi muito importante assistir a shows ao lado dele, conversar com ele, ouvi-lo. Quando fiz show com Cartola, eu já tinha o meu público e a noção de que estava com o Cartola. E eu pensava: “Nossa, estou com um Deus, com um cara que adoro, admiro”. Com Adoniran foi a mesma coisa.

Brasileiros – Como foi sua convivência com Adoniran?
C.V. –
Um aprendizado. Adoniran foi o cara mais popular que conheci. Andar com ele nas ruas de São Paulo era uma festa, nunca vi um cara tão popular, alguém com tanta presença de espírito. Ele tinha um olhar periférico, observava tudo. Acho que era por isso que ele fazia tão bem os sambas.

Brasileiros – Você é conhecido por ser boêmio…
C.V. –
Sempre fui boêmio, desde os meus 14, 15 anos. Meu pai gostava da noite e eu gostava de andar com ele. Por isso fiz amizade com um pessoal mais velho. Tinha um lugar em São Paulo em que uns amigos tocavam percussão, eu ia sempre e era o mais moço, o precoce. Com 15, 16 anos, gostava de ir ao Jogral, que tinha um time de primeiríssima. Lá, vi Jorge Ben, Trio Mocotó, cantores excelentes, como Nara Regina, Jane Duboc, Adauto Santos, Geraldo Cunha… Geraldo, aliás, foi meu professor de violão, tocava muito bem e era bom compositor. Uma vez, entrei no Jogral e ele cantou uma música que tínhamos feito. Aquilo foi uma emoção… Eu tinha 17 anos, não lembro mais desse samba. Depois de muitos anos, eu o encontrei em um show que fiz no Rio de Janeiro e ele tocou o samba de novo. Muito emocionante.

Brasileiros – Alguém apadrinhou você, no melhor sentido da palavra?
C.V. –
Não. Mas, se houve alguém que impulsionou minha carreira foi o argentino Fernando Falcon.

Brasileiros – E sobre as parcerias? Tem uma história com o Paulinho Boca de Cantor…
C.V. –
É, ele fez o breque de Minha Nega e entrou na parceria. Adoniran e eu estávamos no Bar do Alemão com o samba praticamente pronto, quando Paulinho apareceu e fez o breque.

Brasileiros – Você também é parceiro do sociólogo Antonio Candido?
C.V. –
Sim, ele é pai de minha primeira mulher, Laura de Mello e Souza. Dora e Maria Clara, minhas filhas, são netas dele. Mais tarde, me casei com Maísa Aguiar. Estamos juntos há 26 anos em um bom casamento. Mas Candido e eu permanecemos amigos. Modo de Ser é o título da música que fizemos juntos. Uma vez, estava na casa de Homero Ferreira [produtor musical, morto em 2011] e ele leu: “Como nosso modo de ser é ainda bastante romântico, temos uma tendência quase invencível…”. O texto ia por aí e eu achei bacana. Foi Homero quem me disse que era do Antonio Candido, que era o começo de um ensaio sobre Machado de Assis. Depois, pedi ao Candido para fazer a melodia em cima do texto. Deu na música, que gravei no meu disco de 15 anos de carreira.

Brasileiros – E sua parceria com Cartola e Nelson Cavaquinho?
C.V. –
Fui muito amigo do Cartola, fizemos até uma turnê pelo Brasil, o que nos aproximou bastante. Não fiz música com ele nem com Nelson. Mas, junto com Cristina Buarque, produzi o último disco do Nelson – As Flores em Vida. Também participei do curta-metragem Nelson de Copo e Alma, de Ruy Solberg, e fiz shows com ele.

Brasileiros – Na turnê com Cartola, qual era a formação do grupo?
C.V. –
Era o Projeto Pixinguinha. Nessa turnê, conheci Afonso Machado, que acompanhava Cartola. Eu fui com um músico só, Edson José Alves, que é um grande maestro de São Paulo e já tinha feito arranjos para mim. Cartola tinha o time dele, entre eles Afonso, que é meu amigo, meu parceiro e parceiro da minha filha Dora, que fez o disco Samba Valente, com arranjos dele.

Brasileiros – Mais parceiros?
C.V. – João Nogueira, Chico Buarque, Paulo César Pinheiro, Elton Medeiros, Noveli, Suely Costa, Danilo Caymmi, Nelson Ângelo… São muitos. Os mais frequentes são Paulo César Pinheiro e Paulo César Feital. Com João Nogueira, fiz uns três ou quatro sambas. Com Elton Medeiros, grande ídolo, foram uns quatro também. Com Paulinho da Viola, fiz apenas um.

Brasileiros – E com Chico Buarque, quando aconteceu a primeira parceria?
C.V. –
Em 1986, a música chama-se Nosso Bolero. Eu a gravei, Chico não. Ele gravou outra música nossa que se chama Leve, no disco Carioca. Essa música fizemos para minha filha Dora, para o primeiro disco dela.

Brasileiros – Quais são seus trabalhos mais recentes?
C.V. – Fiz um disco para os cem anos de Adoniran, depois um comemorando os cem anos de Nelson Cavaquinho. Um paulista e um carioca, porque sempre andei por São Paulo e Rio de Janeiro. Desde os anos 1990, canto Nelson Cavaquinho e Adoniran. Convivi com os dois e aprendi muito com eles. No disco do Nelson tem a participação de Chico Buarque, Cristina Buarque e Wilson das Neves. No disco do Adoniran Barbosa, tem Chico, Dora, Martinho da Vila e Galo Preto. Os arranjos são de Afonso Machado.

Brasileiros – Você acabou de gravar um disco…
C.V. – Sim, o álbum chama Vida Sonhada, em que tenho cinco parcerias com J. Petrolino, duas músicas com Dora, sendo uma delas com Afonso Machado, e três músicas só minhas.

Brasileiros – Qual é a sua relação com o Rio de Janeiro?
C.V. – Conheço o Rio desde que nasci porque meu pai fez uma peça na cidade antes de eu completar 1 ano de idade. Mas morei em São Paulo até os meus 30 anos, passando as férias no Rio. A família da minha mãe morava no Rio, meus tios, primos… Depois que me separei de Laura, decidi ficar no Rio, mas estou sempre em São Paulo. Devo muito a essas duas cidades. Estou acima dos bairrismos, admirando o que elas têm de bom.

Brasileiros – Pepe, que jogou ao lado de Pelé e foi treinador vitorioso, diz que sempre que sonha com futebol, sonha que está jogando, nunca como técnico. Você sonha que está tocando ou jogando bola?
C.V. – Pergunta difícil… Não sonho comigo cantando nem jogando bola. Sonho acordado. Jogo bola três vezes por semana. Se eu pudesse, jogava todos os dias.

Brasileiros – Você joga no time de Chico Buarque?
C.V. – Há 33 anos, desde que existe o Polytheama. Mas antes disso, já jogava com Chico em uma pelada no Carioca, um clube no Jardim Botânico.

Brasileiros – Quem é mais craque?
C.V. – Não tem essa, a gente se completa.

Brasileiros – Ataque ou defesa?
C.V. – Jogo do meio para frente. Hoje, engano por causa do rompimento dos ligamentos cruzados dos meus joelhos, que nunca operei. Tenho dores, mas nossa pernada permite que eu sonhe.

Brasileiros – Toda vez que vejo um gol de voleio, eu me lembro de você.
C.V. – Isso é sonho, nunca mais vou fazer essa jogada. Desloquei o ombro fazendo isso e fiquei com medo. E, com medo, não se deve fazer nada. Mas o  importante é que eu estou jogando.

Brasileiros – O prazer da bola…
C.V. – Todos nós que jogamos no Polytheama temos muito prazer em jogar. Paulo César Feital, meu parceiro, colocou uma prótese e foi jogar. Sofro com as dores nos joelhos e todo mundo acha que, um dia, vamos morrer porque jogamos a uma da tarde, em pleno horário de verão. Mas fizemos uma pesquisa e descobrimos que só se morre de infarto à noite.

Brasileiros – Futebol dá samba ou vice-versa?
C.V. – Foi por causa da várzea que fiz minha primeira música sobre futebol, com o Toquinho, Camisa Molhada. Na várzea, se o juiz começa a errar, a gente tira ou então… Sempre depois do futebol, tinha uma roda de samba. Lá no campo do Chico, muito por causa do João Nogueira, que era festeiro, tinha samba bom, muitas continuações depois da pelada. A gente ia para casa dele apenas para cantar, pelo prazer de cantar. O futebol proporciona muito isso.

Brasileiros – Seu irmão, Guilherme Vergueiro, fala que o que mais sentiu quando voltou dos Estados Unidos, no final da década de 1990, foi a morte de João Nogueira em 2000.
C.V. – Ele foi um grande amigo. Andávamos juntos, frequentei muito a casa dele. Dora cresceu com as filhas dele. Inclusive, Dora é madrinha do neto dele.

Brasileiros – Você acredita que é o destino que faz uma pessoa?
C.V. – Acredito que a gente pode ajudar o destino.

Brasileiros – Você ajudou o seu destino?
C.V. – Às vezes sim, outras atrapalhei. Mas sou um homem feliz, não me arrependo de nada. A gente aprende com os erros. Tenho uma grande mulher, filhos maravilhosos. Além de minhas filhas, considero o filho de Maísa, André, meu filho também. Eu o criei. Se eu encontrasse o pai dele (Jorginho Gomes, ex-integrante dos Novos Baianos), um grande músico, diria que sou pai do filho dele.


Comentários

Uma resposta para “A vida sonhada de Carlinhos Vergueiro”

  1. Avatar de Wander Nunes Frota
    Wander Nunes Frota

    Grande cara, uma figuraça super do bem! Pena q não tenha tido tanto reconhecimento qto é merecedor.

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