Nem ciência, nem religião


Uma revoada de maritacas saúda o visitante que cruza os portões do casarão vizinho ao Estádio do Pacaembu. Lá dentro, os amplos cômodos decorados por obras de arte reforçam a sensação de afastamento do caos paulistano. É nesse ambiente tranquilo que o ex-ministro Antônio Delfim Netto, em sua sala no segundo andar, recebe seus convidados, dá entrevistas, escreve artigos e continua, à sua maneira, a influenciar a agenda econômica brasileira. Depois de guiar com mão forte a economia durante a ditadura militar, na Fazenda e no Planejamento, Delfim foi consultado por quase todos os governos desde a redemocratização. Nos primeiros anos do governo Lula, tornou-se interlocutor frequente do então ministro da Fazenda, Antonio Palocci. Uma relação que se perpetuou com o sucessor da pasta, Guido Mantega.

Nesta entrevista à Brasileiros, Delfim elogia o esforço do governo atual para destravar os nós que asfixiam os investimentos nos setores público e privado. E desafia os críticos da equipe econômica a citar um país que ainda siga à risca o chamado tripé da macroeconomia – metas de inflação, câmbio flutuante e responsabilidade fiscal. “Cada um desses sujeitos devia ser posto no Ministério da Fazenda por oito dias”, propõe. “Não mais que isso, porque senão produziriam um estrago muito grande.”

Brasileiros – Houve mudanças importantes na política econômica brasileira nos últimos cinco anos? A presidenta Dilma Rousseff já mostrou diferenças visíveis em relação ao estilo de Luiz Inácio Lula da Silva?
Delfim – Nossa política está evoluindo desde a Constituição de 1988, que deu a diretriz para uma República em que todos estejam sujeitos à mesma lei, sob o controle do Supremo Tribunal Federal. Estamos vendo que as instituições estão funcionando, que é um sistema democrático. E buscamos uma sociedade razoavelmente justa.

Brasileiros – Essa é a parte mais difícil.
Delfim – A Constituição tem coisas que algumas pessoas acham um escândalo, como educação e saúde gratuitas e universais. Talvez por isso não tenhamos ainda nenhuma das duas. Mas são dois objetivos fundamentais. Nós vamos melhorando, estamos nos aperfeiçoando a cada instante. A Dilma é, no fundo, uma tecnocrata. Ela lê os mesmos livros que nós lemos, e é pragmática. Tem levado a coisa com muito cuidado e acho que com sucesso. Mas o crescimento foi pequeno, de fato menor do que poderia ter sido.

Brasileiros – O baixo crescimento não compromete essa avaliação positiva?
Delfim – O Brasil é um país que tem crescido, na média, em torno de 3,7%, 3,8%, 4%, o que é insuficiente, é verdade. Há uma deficiência de crescimento gigantesca, e de investimento, principalmente em infraestrutura. Uma das coisas mais importantes que a presidente Dilma está tentando fazer é cooptar o setor privado. O governo pode fazer discurso, mas quem trabalha é o setor privado. E sem criar condições adequadas para cooptar o empresariado, não vai, não funciona. Veja o que está sendo feito. Caiu a taxa de juros, que era um escândalo. Melhorou o equilíbrio cambial, sem violar as regras da estabilidade financeira, ainda que esteticamente os pequenos truques possam causar algum mal-estar. Agora, pela primeira vez, começamos a reconstruir o mecanismo de planejamento, com a criação de uma estatal (a Empresa de Planejamento e Logística).

Brasileiros – Há quem diga que o Brasil passou anos desconstruindo a área de planejamento e execução de obras públicas, por acreditar que o setor privado resolveria tudo. Em contrapartida, criamos um sistema fiscalizatório tão eficiente que imobiliza os gestores.
Delfim – A estrutura administrativa do governo é muito eficiente. Não tem nenhum país no mundo hoje, entre os emergentes, que tenha algo parecido com a Secretaria da Receita. Temos um Banco Central que se aperfeiçoou muito e um sistema bancário hígido. Os mecanismos de controle são muito mais eficientes que no passado. Só que a instrumentalidade do governo para executar a sua tarefa física é quase nula. É isso que foi destruído.

Brasileiros – O governo Dilma tem conseguido atacar essa questão?
Delfim – É uma evolução. O Brasil se acostumou com o seguinte: tenho um problema grave, baixo um decreto e está resolvido. Depois, veio a crença de que 70% dos problemas o tempo resolve e 30% são insolúveis. Hoje, houve um passo avante, a tentativa de melhorar a estrutura produtiva do Estado. É um esforço que estou vendo, que decorre do pragmatismo da presidente Dilma.

Brasileiros – Esse esforço vai nos permitir driblar os efeitos da crise econômica internacional?
Delfim – O Brasil está saindo dessa confusão. O mundo está caindo aos pedaços, não creio que os próximos cinco anos serão muito prósperos. A Europa vai ter de resolver seus problemas, e os EUA constituem ainda o maior elefante nessa casa de louça em que vivemos. A China vai crescer, mas reduzindo o ritmo. Então, o Brasil tem de fazer um grande esforço de desenvolvimento. Mas deve pensar que o mercado interno, apesar de importante, é insuficiente para dar a todas as atividades um nível de custo mínimo. O setor exportador há de ser, como foi no passado, um complemento fundamental do desenvolvimento econômico. Temos algumas vantagens, como o pré-sal, que, nos próximos cinco anos, vai maturar. Vamos produzir mais petróleo, mas precisamos desenvolver uma indústria petroquímica e não nos transformarmos em um grande exportador de petróleo.

Brasileiros – Ou seja, o pré-sal pode ser uma solução ou uma nova fonte de problemas.
Delfim – Exato. Temos problemas importantes para frente e é preciso pensar neles. Não estou muito convencido de que o modelo usado por nós seja muito eficiente. Não tem razão de por a Petrobras em tudo quanto é canto. Há muitos mecanismos de controle, políticas possíveis que retiram essa carga excessiva de cima da Petrobras. Além disso, o Brasil vai ter de continuar sua expansão na pesquisa agrícola, vai ter de melhorar o sistema de financiamento, vai ter de manter a taxa de juros parecida com a do mundo. Quando tudo estiver funcionando, vai ter de deixar o câmbio exercer o seu papel de preço relativo. O Brasil vai ter de caminhar numa linha em que o desenvolvimento do mercado interno seja feito com um olho no mercado externo, com a maior eficiência possível.

Brasileiros – Só que conquistar o mercado externo é muito mais complicado.
Delfim – Nos próximos cinco anos, o mercado externo será difícil. Hoje, devíamos acelerar a imigração. Trazer de fora engenheiros, pedreiros, químicos, físicos, matemáticos. Para, do mesmo jeito que exportamos cérebros, importar essa mão de obra treinada. O momento é apropriado. Melhoraria o mercado de trabalho de uma maneira importante.

Brasileiros – Seria mais rápido do que formar a mão de obra.
Delfim – Você tem de trazer gente pronta, porque senão leva dez anos para fazer. E nunca houve um momento tão propício como esse. Hoje, o Brasil pode trazer lá de fora, provavelmente, 100 mil profissionais por ano com a maior facilidade. Gente de altíssima qualidade, na qual seus países de origem investiram uma barbaridade. É um ganho líquido. Ao trazer um engenheiro italiano, português, um engenheiro espanhol, economizamos cinco anos de investimento, e aumentamos a competição interna, o que é muito saudável. É uma medida polêmica, porque os sindicatos enlouquecem. Mas o Brasil foi feito assim, por imigrantes.

Brasileiros – O governo tem sido criticado por não seguir à risca o chamado tripé da macroeconomia. Faz sentido essa reclamação?
Delfim – O que é o tripé? Uma meta inflacionária, um câmbio flutuante e uma política fiscal responsável capaz de sustentar os dois primeiros. É uma ideia interessante, mas não uma religião.

Brasileiros – Essa política é tratada como uma panaceia, que resolveria inclusive o problema do baixo crescimento.
Delfim – É ridículo imaginar que com três condições você controla uma economia. Os economistas mais ortodoxos acreditam que não pode haver de forma nenhuma dois objetivos (baixa inflação e alto crescimento), porque só temos um instrumento, que é a taxa nominal de juros de curto prazo, que exercerá efeitos sobre a taxa real de curto prazo, portanto vai controlar a demanda, vai controlar os investimentos. A economia inteira ficaria, na verdade, oscilando em resposta a essa mudança da taxa. É um teorema velhíssimo e correto, só que com base na falsa hipótese de que os instrumentos são independentes. Basta pensar um pouco para ver que a política fiscal e a política monetária não são independentes. Logo, apelar para esse teorema não é uma coisa razoável.

Brasileiros – Não é uma fórmula testada no resto do mundo?
Delfim – Hoje, ninguém leva a sério isso. Vou lhe dar o exemplo de um economista absolutamente ortodoxo, academicamente muito bem-sucedido e que teve o castigo de exercer a profissão na prática. Stanley Fischer, hoje presidente do Banco Central de Israel, diz o seguinte: “Taxa de câmbio é coisa séria demais para ficar na mão de economistas”. É um dos preços mais relevantes para a economia, de forma que você não pode deixá-la solta. E diz mais: “Não existe nenhuma forma de um Banco Central não ter dois objetivos”. Ou seja, não adianta imaginar que existe um Banco Central que não leve em conta o nível de atividade. Como ele diz, ao usar esses instrumentos, a política fiscal, a política monetária, a política cambial, você tenta manter a taxa de inflação relativamente estável e baixa sem prejudicar o crescimento. Não é um tiro ao alvo, percebe? É um tiro para ser acertado dentro de um círculo, onde você tem de um lado o crescimento e do outro lado a inflação.

Brasileiros – Nossos economistas, então, são mais ortodoxos que os estrangeiros?
Delfim – Cada um desses sujeitos devia ser posto no Ministério da Fazenda por oito dias. Não mais que isso, porque senão produziriam um estrago muito grande. Para eles verem as limitações que a realidade impõe aos seus conhecimentos. Os conhecimentos são tão mais úteis quanto mais você desconfia deles. A crença religiosa nesses instrumentos é altamente perniciosa.

Brasileiros – O governo admitiu que não deverá atingir a meta de superávit primário (diferença entre o que o governo arrecada e gasta) em 2012. Diante disso, as críticas à gestão da política fiscal ganham sentido?
Delfim – De fato, o governo tem feito um pouco de arte, um pouco de contabilidade fantasiosa. Tem feito algumas coisas que, digamos, poderiam ser feitas mais abertamente.

Brasileiros – Como, por exemplo, tirar do lado dos gastos alguns investimentos ligados ao Programa de Aceleração do Crescimento. O governo não precisaria recorrer a esse tipo de artifício?
Delfim – Compare a situação fiscal do Brasil com a situação fiscal do mundo. Temos um déficit fiscal de 2,5%, uma dívida líquida de 35%. Não temos nenhuma necessidade de diminuir dramaticamente a relação entre dívida e PIB, embora seja muito bom manter um processo monotônico de redução. Isso aumenta a confiabilidade. Mas é importante também saber que a política fiscal tem de ser anticíclica, certo? A crítica, portanto, de um lado é válida, mas é um problema de estética, não está prejudicando dramaticamente o equilíbrio fiscal.

Brasileiros – Outras críticas são dirigidas aos aportes de recursos no BNDES, que estaria desempenhando um papel no investimento que deveria caber ao setor privado.
Delfim – Mas é natural, é normal que um país tenha um banco de desenvolvimento. Tanto é verdade que hoje todos estão tentando fazer a mesma coisa. A Europa, os Estados Unidos estão tentando desenvolver os seus. Os BRICs estão tentando inventar mais um banco de desenvolvimento. É uma mobilização de recursos para projetos de alta taxa de retorno, mas de retorno social, não privado. É o que justifica o avanço de investimento do governo.

Brasileiros – E as medidas para evitar a valorização do real frente ao dólar, são necessárias?
Delfim – Não existe mais nenhum país do mundo que tenha câmbio livre. Isso só existiu na cabeça das pessoas, só no livro texto. Quando a Suíça faz o controle de câmbio, é a mesma coisa que a rainha da Inglaterra ter frequentado um pub. É um pouco ridículo. Os tais pilares são bons indicadores de uma política razoável, mas devem ser usados como um grão de sal, pragmaticamente. Acho que o Brasil tem feito uma obra muito razoável. Também não adianta discutir com o Guido (Mantega, ministro da Fazenda), quando ele fala em guerra cambial. Todos sabem que o aumento da liquidez mundial valoriza os câmbios. Basta ver, o câmbio mexicano está se valorizando, e o Financial Times diz que o México é hoje o queridinho do mundo. Porque obedece muito mais o mercado do que o Brasil.

Brasileiros – O mesmo mercado que nos levou à atual crise financeira internacional.
Delfim – A crise iniciada em 2008 é simplesmente a reprodução da crise de 1929, produzida pelos mesmos bancos, pelos mesmo sistema financeiro. Os abusos foram os mesmos cometidos em 1929, somados a um problema ainda mais grave, o encantamento dos economistas com a ciência. Os econofísicos.

Brasileiros – Em 1929 não havia tantas justificativas teóricas para os abusos.
Delfim – Naquela época, a coisa foi feita na base do porrete. O presidente do Citi foi preso, o do JP Morgan saiu sem cuecas. A resposta da sociedade foi muito mais dura. Construiu-se uma teoria que se dizia capaz de medir o risco. Na medida em que as pessoas pensavam que isso era possível, assumiam mais riscos. Sem entender que a própria fórmula mostrava que, enquanto o risco aumentava, a capacidade de controlá-lo diminuía. A explosão veio do uso impróprio de derivativos sem os bancos centrais terem a menor ideia da sua extensão.

Brasileiros – As autoridades monetárias sabem, hoje, o tamanho do risco a que estamos sujeitos?
Delfim – Nos Estados Unidos, acontece uma coisa formidável, que é o drama desse sistema que, primeiro, se apropriou do setor real e, depois, do Congresso. Enquanto a resposta, em 1933, foi uma política eficiente de controle, a Lei Steal Glass, agora a resposta do Congresso americano foi uma lei de duas mil páginas, criando 150 instituições. A sem-vergonhice do Congresso foi dizer o seguinte: “Como eu não desejo controlar, vou fazer um sistema tão complexo que esses idiotas não vão conseguir cumprir”. E o (presidente Barack) Obama, na solução do problema, se preocupou muito mais com o destino dos banqueiros do que com os 18 milhões de sujeitos postos na rua por conta deles.

Brasileiros – O que quer dizer que ainda está longe a solução para a crise…
Delfim – Eles destruíram o equilíbrio do sistema, que até hoje não foi recuperado. O sistema financeiro americano ainda não está funcionando. Tanto é verdade que precisou agora o QE3 (a terceira rodada da política de estímulo à economia). Porque falta confiança. Se o trabalhador não acredita que vai ter emprego, corta o consumo, começa a pagar suas dívidas. Se o empresário não acredita que vai ter demanda, corta o investimento, vende o estoque. Se os banqueiros não creem uns nos outros, um não empresta para o outro. Ou seja, ficam procurando liquidez, e morrem afogados nessa liquidez.

Brasileiros – Parece que o ciclo não tem fim. O mundo algum dia vai se livrar das crises?
Delfim – Não existe nenhuma economia de mercado que não flutue. Por definição, porque há um retardamento entre o surgimento da demanda e o da oferta, que produz um movimento cíclico. O homem é cíclico, nunca está normal. Ou está em um grande entusiasmo, ou tem um entusiasmo moderado, ou recai em um sentimento depressivo. Como é um ser gregário, um imitador, esses processos se transmitem. No fundo, a crise é um processo de infecção, de transmissão de uma doença. Todo mundo começa a dizer “vai dar tudo errado, vai dar tudo errado”, começa a tomar medidas para se prevenir do erro. E as medidas preventivas produzem o fato. Ou seja, a profecia se autorrealiza.


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