Supremos poderes, supremas controvérsias

DESAPEGA – Dilma Rousseff solta de uma cadeira a toga de Joaquim Barbosa durante a posse do novo presidente do Supremo

Em vez de substituível, os ministros do Supremo Tribunal Federal falam fungível. No lugar de proibição legal, usam o termo cominação. Juízo deliberatório prefacial é o juízo feito em um primeiro momento, não definitivo. Para se referir ao Ministério Público, os ministros recorrem ao francês – Parquet. No plenário ornado com painel do artista plástico Athos Bulcão, todos se tratam por Excelência. E pedem desculpas em latim para discordar – data venia. Quando querem enfatizar ainda mais as desculpas, invocam o data maxima venia. No julgamento da ação penal 470 – a do mensalão –, o Supremo não chamou a atenção apenas pela linguagem peculiar ou pelos rituais que chegaram a provocar revoadas de becas. A Corte também causou espanto ao abrigar debates destemperados entre ministros, atuar como tribunal de primeira instância e, sobretudo, por condenar sem a tradicional prova irrefutável. Às 14h26 da quinta-feira 2 de agosto, quando foi aberta a primeira sessão do julgamento, um longo histórico de impunidade pairava sobre autoridades com prerrogativa de foro perante o Supremo – como o presidente da República, ministros de Estado, senadores e deputados federais. Quatro meses depois, em clima de “pega, esfola e mata”, a balança havia pendido de forma radical para o lado oposto.

É fundamental punir a corrupção. É também essencial que as regras do julgamento sejam claras, sem brechas para o surgimento de um tribunal de exceção. Entre as controvérsias do julgamento do mensalão do PT está o fato de todos os 38 réus serem levados à mais alta corte do País, quando apenas três, que são deputados, têm o chamado foro privilegiado. São eles João Paulo Cunha (PT-SP), Pedro Henry (PP-MT) e Valdemar Costa Neto (PR-SP). O Supremo entendeu diferente no caso do mensalão do PSDB, ocorrido em 1998, em Minas Gerais. Desmembrou o processo. Com isso, os 14 réus sem foro privilegiado serão julgados por um juiz de primeira instância. “O motivo relevante que, a meu ver, autoriza o desmembramento, é o número excessivo de acusados, dos quais somente um – o senador da República Eduardo Azeredo – detém prerrogativa de foro perante o Supremo Tribunal Federal”, registrou, em maio de 2009, o ministro Joaquim Barbosa, relator dos dois processos.

O Supremo determinou o contrário em relação ao mensalão do PT. Não foi uma decisão unânime. Embora tenha sido voto vencido, o ministro Marco Aurélio Mello marcou posição: “As decisões do Colegiado vêm variando e isso tem provocado insegurança jurídica. Em alguns casos, implementa o desmembramento e, em outros, procede de forma diametralmente oposta”. Os réus, por sua vez, perderam o direito de recorrer de uma possível condenação em instância diferente. Contra as decisões do Supremo, não há recursos senão ao próprio tribunal.

Com quase 40 réus, o processo do mensalão logo se tornou o caso mais complexo já julgado pelo Supremo. Quando a primeira sessão foi aberta, tinha 50.199 páginas, 234 volumes e 595 anexos. “Do ponto de vista político, o julgamento desestabilizou a cultura da impunidade”, diz Oscar Vilhena Vieira, professor da Direito GV e autor de Supremo Tribunal: Jurisprudência Política. “Do ponto de vista jurídico, não tem parâmetro de comparação, uma vez que nesse caso o Supremo julgou diretamente os crimes, analisou provas, atuou como tribunal de primeira instância. Ao longo de sua história, o Supremo julgava se normas ou decisões de instâncias inferiores eram compatíveis com a Constituição.”

São quase dois séculos de história. Em sua origem está a Casa da Suplicação do Brasil, criada por decreto pelo príncipe regente dom João, poucos meses depois de a família real portuguesa chegar ao Brasil. Nasceu como Supremo Tribunal de Justiça em janeiro de 1829 e virou Supremo Tribunal Federal 62 anos depois, por decisão do governo provisório da República. Só em 2012 a Corte julgou mais de 71 mil processos, entre decisões tomadas por apenas um ministro e as decididas pelo colegiado. Na última categoria esteve um outro julgamento marcante – o que descriminalizou o aborto de fetos anencéfalos.

Em princípio, o Supremo atua como tribunal de última instância e como guardião da Constituição. Julga questões de constitucionalidade, mesmo quando não há um litígio concreto. Fazer o papel de tribunal de primeira instância, como está ocorrendo no caso do mensalão, é situação excepcional. Não por acaso, no decorrer do julgamento, em muitas ocasiões os ministros se atrapalharam com a ordem dos votos e a aritmética das penas. Ao mesmo tempo, em meio a controvérsias, firmaram novas interpretações da lei. Sobre a delação premiada, decidiram que o réu não precisa ter a intenção de colaborar com a investigação para ser beneficiado com uma pena mais branda. É o que ocorreu com o ex-deputado Roberto Jefferson, que, na Justiça, jamais admitiu ter cometido crime ou ser o delator do esquema do mensalão do PT. O revisor do processo, o ministro Ricardo Lewandowski, defendia que não era o caso de premiar o réu.

Os ministros decidiram também pelo alargamento do conceito de lavagem de dinheiro. É óbvio que, para a lavagem existir, tem de existir um crime antecedente, que gera um dinheiro sujo. “A grande discussão do judiciário brasileiro antes era quanto o acusado precisava conhecer do crime antecedente para ser considerado lavador de dinheiro”, afirma Pierpaolo Cruz Bottini, professor de Direito Penal da Universidade de São Paulo. “O Supremo entendeu que basta a pessoa suspeitar que o dinheiro recebido tem origem ilícita para praticar lavagem. Isso vai afetar milhares de ações.”

Outra novidade foi relativa à corrupção, que envolve oferecer pagamento ou vantagem a um funcionário público para que ele pratique um ato que esteja dentro de suas atribuições – o chamado ato de ofício. “O debate todo era o quanto a acusação precisava demonstrar sobre a intenção de praticar esse ato”, diz Bottini, que defendeu no processo o ex-deputado petista professor Luizinho, absolvido por unanimidade. “Na ação penal 470, o Ministério Público comprovou que houve o pagamento, mas não conseguiu identificar o ato de ofício. Presumiu, então, que, se um partido paga um parlamentar, quer que ele pratique ato de ofício. O Supremo acatou.”

O Supremo colocou ainda na ordem do dia a teoria do domínio do fato. Doutrina germânica dos anos 1930, desenvolvida três décadas depois pelo jurista Claus Roxin em obra de 700 páginas, a teoria do domínio do fato destina-se a enquadrar o homem que não está presente na cena do crime, mas tem o controle da ação. Roxin, hoje com 81 anos, debruçou-se sobre o tema por causa de crimes cometidos durante o nazismo. Sua meta era influenciar a jurisprudência da Alemanha, que considerava como mero partícipe quem tinha posto-chave em um aparato de poder e mandava executar uma ação criminosa. Quem dá a ordem, defende o jurista, é também autor do crime. “De início, a jurisprudência alemã ignorou a teoria que, no entanto, foi cada vez mais aceita pela literatura jurídica”, contou Roxin ao Tribunal dos Advogados, durante recente participação em seminário sobre Direito Penal no Rio de Janeiro.

Entre os casos de êxito na aplicação da teoria estão os julgamentos de Alberto Fujimori, ex-presidente do Peru, e de homens do Conselho Nacional de Segurança da extinta Alemanha Oriental. “Fujimori controlou os sequestros e os homicídios que foram realizados. Ele deu as ordens. A Corte Suprema do Peru exigiu as provas desses fatos para condená-lo. No caso dos atiradores do muro, na Alemanha Oriental, os acusados foram os membros do Conselho Nacional de Segurança, já que foram eles que deram a ordem para que se atirasse em quem estivesse a ponto de cruzar a fronteira e fugir para a Alemanha Ocidental”, esclareceu Roxin, referindo-se ao Muro de Berlim, que separava as duas Alemanhas nos tempos da Guerra Fria. “Ocupar posição de destaque não fundamenta o domínio do fato. O ‘ter de saber’ não é suficiente para o dolo, que é o conhecimento real e não um conhecimento que meramente deveria existir.”

Em Brasília, ocorreu uma espécie de flexibilização das provas. No caso do ex-ministro José Dirceu, com base em uma série de indícios, decidiu-se que ele “tinha” de saber da existência do mensalão. Questionado se as provas contra o ex-ministro não seriam mais “tênues” do que as relativas a outro réu, o próprio procurador-geral da República, Roberto Gurgel, assumiu a possibilidade: “Na medida em que sobe a hierarquia na organização criminosa, as provas vão ficando mais e mais tênues. O mandante não aparece. Não quero ficar fazendo previsões, mas acho que estamos num bom caminho.”

Uma das provas no caminho que pavimentou a condenação do ex-ministro é o depoimento da mulher de Marcos Valério, Renilda, à Comissão Parlamentar Mista de Inquérito que apurou o mensalão no Congresso. Renilda relatou aos parlamentares uma conversa que tivera com o marido quando o escândalo estourou. Segundo o relato, preocupada com o patrimônio da família, ela perguntou ao marido se os empréstimos tomados em nome da empresa dele seriam pagos. Marcos Valério a tranquilizou, contando ter sido informado que José Dirceu sabia dos empréstimos.

O depoimento de Renilda foi extrajudicial. No mesmo âmbito, Marcos Valério esclareceu que jamais discutira os empréstimos com o ex-ministro, mas que ouvira do tesoureiro do PT, Delúbio Soares, que José Dirceu sabia. Teria tomado conhecimento do fato durante um jantar no Hotel Ouro Minas, em Belo Horizonte. Na Justiça, Delúbio negou ter passado a informação para Marcos Valério. Delúbio, como se sabe, é um túmulo. E defende os correligionários com unhas e dentes. Mas outro réu, o executivo do Banco Rural Plauto Gouveia, que estava no jantar, garantiu à Justiça que os empréstimos não foram discutidos no encontro. Além disso, na Justiça Marcos Valério mudou a versão. Afirmou que seu informante havia sido o antigo secretário-geral do PT, Sílvio Pereira.

Enfim, para cada afirmação, tem o seu oposto. Existe, de fato, uma coleção de indícios apontando que José Dirceu “tinha de saber” e de comandar o esquema. Não há prova cabal, aquela que o jurista Claus Roxin considera imprescindível para se usar a teoria do domínio do fato. Ao debater o tema, o relator Lewandowski lembrou o então vice-presidente Pedro Aleixo, quando o governo Costa e Silva decretou o Ato Institucional 5, em 13 de dezembro de 1968: “Presidente, o problema de uma lei assim não é o senhor, nem os que com o senhor governam o País. O problema é o guarda da esquina.” Para Lewandowski, a aplicação da doutrina germânica sem provas irrefutáveis tem potencial para provocar forte impacto na primeira instância: “O que me preocupa é como os 14 mil juízes vão aplicar a teoria do domínio do fato se o Supremo Tribunal Federal não fixar balizas claras.”

Com papéis complementares no julgamento – revisor e relator –, Lewandowski e Joaquim Barbosa protagonizaram debates figadais no plenário. Não foi uma novidade na trajetória de Joaquim Barbosa. Famoso pela ironia e pelo destempero, em 2008 ele chegou a chamar o então ministro Eros Grau de “burro” e “velho caquético”. Nos primeiros quatro meses do julgamento do mensalão, distribuiu alfinetadas e sorrisos irônicos. Em uma das ocasiões, foi repreendido pelo ministro Marco Aurélio: “Cuide das palavras que venha a utilizar quando eu estiver votando. Não sorria, porque a coisa é muito séria. Nós estamos no Supremo. O deboche não cabe.”

Cada detalhe do julgamento, incluindo os bate-bocas entre ministros, foi exibido ao vivo pela TV Justiça. Em meados de outubro, o acesso à transmissão foi ainda ampliado. Começou a funcionar o serviço que permite acompanhar o julgamento pelo celular ou tablet. No final do mês, foram registrados 8.930 acessos simultâneos. Antes, o maior número de pessoas acompanhando pela internet uma sessão do Supremo ao mesmo tempo era de 350. Indicado para a vaga do ministro Cezar Peluso, que se aposentou no final de agosto, Teori Zavascki adiantou na sabatina no Senado suas restrições à publicidade : “O excesso de exposição não colabora para as boas decisões. Esse sistema brasileiro é inédito. Em geral, nas cortes de Justiça, as decisões são tomadas em sessões reservadas e depois são publicadas bem fundamentadas.”

Conhecido como magistrado técnico, avesso a conversas ao pé do ouvido, Zavascki afirmou dias depois que, se fossem levar em conta a vontade popular, os juízes já teriam implantado a pena de morte no País. “Para aplicar a lei, o juiz não escapa de decisões impopulares”, ressaltou o novo ministro. Em sua passagem pelo Brasil, o alemão Claus Roxin demonstrou pensar de forma similar: “O juiz não tem de ficar ao lado da opinião pública.”

Quando Zavascki chegou ao Supremo, Joaquim Barbosa já presidia a Corte. Na condição de ministro mais antigo da Casa que ainda não havia assumido a presidência, o relator do mensalão substituiu Carlos Ayres Brito, que se aposentara em meados de novembro. Teve uma posse repleta de celebridades, uma festa sem precedentes no Supremo. Convidada de honra, a presidenta Dilma Roussef manteve a linha séria o tempo todo. No plenário do Supremo, ela não sorriu nem quando precisou soltar a capa da beca de Joaquim Barbosa, que se prendera em uma cadeira. No Salão Branco, palco dos cumprimentos, apertou a mão de Joaquim Barbosa. Lewandowski, que fora empossado como vice-presidente da Casa, ganhou um sorriso e dois beijinhos.

ARRASOU - O ministro Luiz Fux canta Tim Maia na festa de Joaquim Barbosa: “Faz de conta que ainda é cedo, tudo vai ficar por conta da emoção”

Às vésperas da troca de comando no Supremo, a presidenta havia falado pela primeira vez sobre o julgamento, ao jornal espanhol El País. “Acato suas sentenças (do STF), não as discuto. O que não quer dizer que nenhuma pessoa neste mundo de Deus esteja acima dos erros e das paixões humanas”, disse Dilma. Na noite da posse, a presidenta não foi à festa em homenagem ao novo presidente do Supremo, bancada por associações de magistrados, que reuniu 1.200 pessoas numa casa luxuosa de Brasília, o Porto Vittoria, às margens do lago Paranoá. Apesar da alta concentração de artistas no salão, quem fez sucesso no palco foi o ministro Luiz Fux, que tocou guitarra e cantou Um dia de domingo, de Sullivan e Massadas. Horas antes, na sessão solene, Fux já havia feito o discurso de boas-vindas ao novo presidente em nome da Corte. Pela tradição, o papel caberia a Celso de Mello – o decano –, mas, a pedido do próprio Barbosa, ficou com Fux.

Joaquim Barbosa, que vem sendo apontado como potencial candidato à presidência da República nas redes sociais, surpreendeu pela serenidade no discurso de posse, mas logo voltou ao velho estilo. Em plenário, reclamou de seu antecessor na presidência. Disse que, apesar de “ter insistido várias vezes”, Ayres Britto havia se esquecido de fixar as penas de um dos réus antes de se aposentar. “Foi um modo de dizer, não esqueci coisa nenhuma”, contemporizou Ayres Britto. Até a publicação do acórdão e do julgamento dos embargos a serem propostos pela defesa, estima-se que o Supremo tenha pela frente mais seis meses de mensalão. Trata-se, sem dúvida, de um dos mais polêmicos casos apreciados pela Corte. Não é, no entanto, o mais importante, na opinião do advogado Marco Antonio Rodrigues Barbosa, presidente da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos: “O grande julgamento ocorreu em 2010, sobre a Lei de Anistia, quando, lamentavelmente, o Supremo acabou sem reconhecer a tortura como crime contra a humanidade.”

Examinando em retrospectiva a trajetória da mais alta Corte do País, há pelo menos uma certeza: o Supremo também erra. Um de seus maiores desacertos no passado foi apontado por Celso de Mello, o ministro que mais conhece a história da Corte, em Notas sobre o Supremo Tribunal (Império e República). Trata-se do julgamento do Habeas Corpus 26.155, de junho de 1936, um pedido de indulto feito pela alemã de origem judaica Olga Benário, para não ser expulsa do Brasil e entregue a seu país natal, já dominado pelo nazismo. Casada com o líder comunista Luís Carlos Prestes, Olga estava grávida de sete meses e argumentou que extraditá-la para a Alemanha significaria colocar o filho de um brasileiro sob o poder de um governo estrangeiro. O Supremo decidiu pela extradição, pois ela era considerada pelo governo Getúlio Vargas como “perigosa à ordem pública e nociva aos interesses do País”. Despachada do Brasil em um cargueiro alemão, Olga foi presa ainda a bordo por oficiais da Gestapo. Acabou morrendo no campo de concentração nazista de Bernburg.


Comentários

Uma resposta para “Supremos poderes, supremas controvérsias”

  1. Avatar de Leonardo Fabricio
    Leonardo Fabricio

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