Segurança como direito – um desafio para o Brasil

A cada ano, quase 50 mil pessoas morrem assassinadas no Brasil. A dramaticidade dos números, no entanto, não parece chocar a sociedade brasileira. Vivemos em um aparente estado de anestesia que alterna estratégias individuais de proteção com demandas por políticas mais repressivas por parte do Estado.

Enquanto isso, a proliferação do medo e da sensação de insegurança avança em praticamente todos os grandes centros urbanos brasileiros sem que tenhamos conseguido – Estado e sociedade – criar um projeto de segurança compatível com o País que queremos ser.

Os elementos que explicam a violência e a criminalidade no Brasil combinam um gradiente extenso e variado:  a fragilidade e ineficiência das instituições; o avanço e profissionalização do crime organizado;  o acesso difundido às armas de fogo e seu mercado ilegal; uma sociabilidade que alimenta uma cultura da resolução violenta de conflitos; as disparidades de ordem estrutural; além das políticas sociais que ainda não conseguiram beneficiar integralmente a sociedade brasileira.

Essa combinação fez da violência e, consequentemente, da segurança pública temas essenciais para descrever os processos de modernização e urbanização do País. O crescimento dos centros metropolitanos brasileiros foi acompanhado pelo aumento sensível das taxas de criminalidade, roubos, sequestros, furtos e, sobretudo, homicídios, isso fez com que passassem a compor o cotidiano das grandes capitais brasileiras. Entre os anos de 1980 e 2004, a taxa nacional de assassinatos praticamente triplicou.

É claro que o Brasil, a despeito do seu lugar de destaque no ranking dos países mais violentos do mundo, não está sozinho: o século 20 foi classificado pela Organização Mundial da Saúde como um dos períodos mais violentos da história da humanidade. A OMS avalia que quase 200 milhões de pessoas morreram como resultado direto ou indireto de conflitos.

Mas, mesmo considerando o cenário internacional, por que a violência converteu-se em um dos grandes temas para pensar o Brasil em particular? E, mais, por que essa relevância não se traduziu até hoje numa política de segurança pública tratada como prioridade, como foi o caso de tantas outras?

A distribuição desigual da violência entre os estados, no interior das cidades, e a forma como ela afeta diferentemente grupos sociais diversos são boas pistas para responder a tais perguntas.

Suas múltiplas versões são, hoje, um retrato das deficiências da cidadania brasileira. Expressam desigualdades antigas, estruturais, e suas atualizações recentes.

Os homicídios afetam majoritariamente homens jovens, entre 15 e 24 anos, pobres, moradores das periferias das cidades brasileiras. Dados do Mapa da Violência 2012 revelam que, a partir de 2002, o número de homicídios contra a população branca vem diminuindo. Paralelamente, no mesmo período, aumentaram os assassinatos contra a população negra. Se essa diferença sempre existiu, ela se acentuou ao longo na última década. Em 2002, proporcionalmente, morreram 45,8% mais negros do que brancos. Já em 2010, essa diferença foi de 139%. Entre as quase 50 mil vítimas de homicídio no Brasil, em 2010, mais de 70% eram negros. Os números mostram, portanto, que não há aleatoriedade em se tratando da vitimização.

O mesmo princípio vale para a manifestação da criminalidade no território. A oposição entre morro e asfalto no Rio de Janeiro talvez seja a ilustração mais conhecida de uma cidade apartada pela violência. Mas o mapa de distribuição da criminalidade em São Paulo também é bastante didático ao mostrar como os bairros mais centrais concentram os crimes contra o patrimônio, enquanto a maioria dos crimes contra a pessoa ocorre nas periferias. Essa mesma cisão pode ser encontrada em muitas outras cidade do País e ela inspira estratégias de proteção que adotam a segregação como princípio. Nesse contexto, a exclusão de determinados grupos sociais alimenta a utopia de que estaríamos mais seguros. Vale lembrar que o Brasil está entre os países que mais gastam com segurança privada; as cidades brasileiras ainda vivem a ilusão de que seremos capazes de criar bolhas de segurança.

É claro que o problema passa também pela compreensão dos dilemas e deficiências da segurança pública em sua dimensão institucional. A concepção original de segurança e suas origens no regime militar brasileiro promoveram um divórcio quase definitivo entre a ideia de garantia de direitos e segurança pública. Consequentemente, a despeito dos avanços democráticos, ainda nos dias atuais a segurança não é vista como uma política social tal como a educação ou a saúde. Ao contrário, é concebida quase exclusivamente como instrumento de repressão.

Ainda que a “Constituição Cidadã” tenha promovido mudanças importantes em muitos campos das políticas públicas, elas não alcançaram a segurança. A reforma das forças policiais, um novo alinhamento das responsabilidades e atribuições dos distintos níveis governamentais e o próprio sistema de justiça criminal passaram por reformulações superficiais e claramente insuficientes perante os desafios impostos pela realidade. Entre os muitos efeitos está o desequilíbrio entre os esforços de prevenção e uma ideia equivocada de punição. O uso abusivo da força em substituição ao investimento em capital humano, os poucos canais de diálogo estabelecidos com a sociedade civil, a falta de atenção à qualificação e condições de trabalho dos policiais e as constantes violações de direitos que caracterizam muitas das ações de repressão à criminalidade estão entre os sintomas de uma concepção não apenas pouco democrática, mas extremamente ineficaz de segurança.

Esse é um quadro incompatível com o ciclo atual de desenvolvimento econômico e social do País. Não encontra correspondência nas políticas de afirmação de direito ou nas aspirações do Brasil em se representar como um país desenvolvido nacional e internacionalmente.

Mas se o cenário parece um caso perdido – não por acaso a expressão “enxugando gelo” é constantemente evocada para descrever as políticas de segurança –, não temos outra escolha a não ser acreditar na viabilidade de um projeto político que pratique a segurança como um direito.

Para tanto, do ponto de vista institucional, alguns temas são urgentes. A reforma das polícias é uma pauta antiga, que vem se tornando cada vez mais inevitável a despeito da resistência encontrada em setores das polícias Civil e Militar. Da mesma forma que o aprimoramento da inteligência policial é importante. A taxa de esclarecimento de crimes ainda é muito baixa em vários estados e informações sobre autoria, motivação, etc. são essenciais não apenas para encontrar os culpados, mas para planejar ações de prevenção mais eficazes.

Mas a dimensão técnica não esgota a tarefa transformadora. Se vamos, finalmente, conceber a segurança como direito, esse não pode ser um campo de atuação restrito às polícias ou ao sistema de justiça criminal. Não se trata da substituição do modelo policial, mas do reconhecimento de que a arena penal não é suficiente e, sozinha, já não deu e nem dará conta do problema.

Experiências de políticas exitosas apontam caminhos alternativos e ampliam o repertório de soluções. A partir do ano 2000, o município de Diadema surpreendeu o País ao investir numa política local de prevenção que envolvia campanhas de desarmamento, trabalho em cooperação com a Polícia Militar, controle e regulação da venda de bebidas alcoólicas e uma boa articulação dos programas sociais, particularmente aqueles voltados para a juventude. O resultado foi uma redução dramática no número de homicídios. A cidade de Canoas, no Rio Grande do Sul, foi a primeira na América Latina a adotar uma tecnologia de ponta para detectar e prevenir o uso de armas de fogo. Faz isso, hoje, como parte de um pacote de políticas que inclui, entre outras coisas, a reforma e ocupação de espaços públicos e a valorização das mulheres como agentes de prevenção.

As Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) e sua versão UPPS sociais, no Rio de Janeiro, trouxeram uma nova arquitetura política para garantir a presença do Estado em áreas dominadas pelo crime organizado: terrenos pacificados por meio da presença maciça da polícia, combinada com a oferta de serviços sociais até então não disponíveis – dos mais básicos, como coleta regular de lixo, até atividades culturais sofisticadas, como festivais literários.

Com todas as imperfeições de um processo em construção, estamos falando de iniciativas que inovaram ao agregar ações sociais ao repertório de políticas de prevenção e repressão.

Na mesma direção, projetos de organizações da sociedade civil como o Afroreggae ou a Central Única de Favelas (CUFA) substituem a imagem de morros ou periferias violentas por uma identidade associada à força criativa, econômica e cultural.

Por fim, temos hoje um campo de “intelectuais da segurança”, que reúne acadêmicos, gestores e policiais, que vem promovendo uma saudável aproximação entre pesquisa e formulação de políticas públicas.

Tudo isso indica que, ao mesmo tempo que vivemos a crise de um modelo, evidenciada por estatísticas assustadoras, o Brasil tem uma oportunidade única de fazer valer também para segurança o bom momento pelo qual o País vem passando.

Por um lado, enquanto sociedade, temos de encarar esse problema como coletivo. Abandonar a ideia de que a segurança pode ser um privilégio de poucos e aceitar a máxima desafiadora, mas real, de que ou estamos todos seguros ou ninguém estará. Por outro, é imprescindível encerrar o descompasso entre as inegáveis conquistas democráticas e sociais vividas pelo País na sua história recente e as estatísticas de violência dignas de uma guerra. O Estado precisa dar sinais de que reconhece o enfretamento da violência como uma etapa fundamental para que o País cumpra seu ciclo de desenvolvimento. Trata-se da afirmação de uma cidadania integral e universalizada e da reversão de uma economia desigual de riscos. Significa honrar o compromisso com a transformação social, com os jovens, garantindo que as parcelas mais vulneráveis da sociedade brasileira tenham alternativas para além de uma perspectiva de vida abreviada.


*Paula Miraglia é doutora em Antropologia pela Universidade de São Paulo (USP)


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