Casa lusa em resgate

Como nos versos do poeta Vinicius de Moraes: “Era uma casa muito engraçada, não tinha teto, não tinha nada”. No miolo, ruínas. Em pé, edificadas em pedra, só as fachadas frontal, de fundos e as paredes laterais. A casa assentada sobre restos de uma antiga muralha romana, no alto do histórico Morro da Sé (Pena Ventosa ou Penhasco dos Vendavais), junto à Catedral e à Casa Episcopal da cidade portuguesa do Porto, era o que procurava há anos José António Oliveira Martins, professor na Escola de Música da Universidade de Rochester (EUA). Os objetivos: investir, ter onde ficar ao regressar para sua terra natal e alugar o imóvel a turistas.

O sonho de Martins era uma casa de três quartos ou que pudesse ser adaptada a essa tipologia, com valor patrimonial no Centro Histórico do Porto, boas vistas − de preferência para o rio Douro −, área para jardim e flexibilidade de usos. “Pronto”, como dizem os portugueses, a casinha em ruínas no no 19 da rua D. Hugo, antiga rua de Trás da Sé, a segunda mais antiga do Porto, com reminiscência medieval no traçado e pavimentação, perto da sede do Museu Guerra Junqueiro e da Associação dos Arquitetos do Porto, calhava perfeitamente.

De seus fundos, com espaço para o jardim, avistam-se a Muralha Fernandina (1336), de fatura românica, a centenária e fotogênica ponte em estrutura metálica de D. Luís I (1886), o Douro e seus barcos, a Vila Nova de Gaia com as famosas caves de vinho do Porto, além de boa parte do centro da cidade, tombado pela UNESCO como Patrimônio Cultural da Humanidade, em 1996, e que desce pela encosta em direção ao rio com ruas tão estreitas quanto as que serpenteiam pelas favelas dos morros cariocas.

No destaque, fundos da casa restaurada, pintada em azul. Abaixo, seu estado antes das obras

Todos os imóveis da rua haviam sido contemplados no Projeto Base para o Quarteirão D. Hugo, elaborado para recuperação pela Porto Vivo SRU – Sociedade de Reabilitação Urbana –, empresa de capital misto (60% do governo federal e 40% do municipal do Porto), que planeja, licencia e executa obras no centro histórico e em áreas de interesse social na cidade. “Esse aspecto representou, para mim, uma mais valia – lembra Martins –, pois, embora o documento não tivesse caráter vinculativo, mostrava um interesse institucional em incentivar os proprietários a fazerem obras de reabilitação tendo em atenção o conjunto do quarteirão.”

O investimento total no imóvel, nas contas de Martins, rondou os 290 mil euros (R$ 783 mil). A casa custou 80 mil euros e as obras, cerca de 170 mil. No mais foram impostos – houve redução de 23% para 6% do Imposto sobre Valor Acrescentado (IVA) –, projetos de arquitetura, execução, especialidades, arqueologia, fiscalização, licenças e alguma mobília.

O Brasil no Douro
Adriana Floret, mineira de Muriaé, radicada no Porto há mais de 15 anos, presidente da recém-criada Associação Portuguesa para Reabilitação Urbana e Proteção do Patrimônio, cuidou da restauração. É do escritório dela, conveniado à Porto Vivo e especializado em recuperação de patrimônio histórico, o projeto de restauro e modernização da moradia adquirida por Martins. Adriana encarregou-se de preservar o que restou de história, atender aos anseios de Martins e de propor uma reconstrução avançada para o interior destruído com vistas aos padrões de conforto da atualidade.

Na primeira visita ao imóvel, em março de 2010, um susto: estava tão mal conservado que não deu para entrar e ver o interior. “Ao fim, o resultado foi altamente compensador porque o investimento feito se compara ao de comprar um apartamento novo na cidade, mas sem a localização privilegiada da casa”, afirma Martins.

Dois registros da frente da casa, na rua D. Hugo: antes e depois do projeto da arquiteta brasileira Adriana Floret

De fato, o harmonioso diálogo conseguido pelo projeto entre os remanescentes históricos e os elementos contemporâneos tornou atraente a velha-renovada residência. Para a edificação estreita e vertical (pouco mais de 4 m de frente, cerca de 25 m de fundo), manteve-se os dois pavimentos originais a partir da cota da rua e criou um terceiro, em piso parcialmente enterrado (cave). Assim, atendeu ao desejo do proprietário de três quartos (um deles perto da cozinha-sala de refeição-estar na cave), mais um amplo deck dando para a paisagem e o jardim. Articulando os três pavimentos de 60 m2 cada um, criou-se uma escada central com guardas em chapa metálica e soleiras em madeira, como um elemento simultaneamente escultural e funcional subindo pelo pé direito de 6 m.

“A parede de pedra à vista, no interior da casa, foi uma opção estética e não uma imposição das leis de preservação do patrimônio”, diz Adriana. “Quando começamos a retirar a argamassa, percebemos a pedra e a mantivemos, assim como não usamos cimento armado nas estruturas, só madeira e metal.” Mesmo assim, em cumprimento às diretrizes do patrimônio histórico, devido à localização do edifício e intervenção que sofreria, a arquiteta teve de contratar sondagens arqueológicas sob a orientação da prefeitura do Porto.

De tão relevante, o resultado das sondagens impediu o rebaixamento da cota da cave em toda a sua extensão, como o projeto previra originalmente. “Tivemos de alterar os planos durante a obra e fazer um desnível”, conta Adriana. O achado – restos de uma antiga muralha romana (ou melhor, um muro defensivo) – precisou ser cuidadosamente protegido por uma caixa de madeira (daí os degraus que levam a um segundo nível na sala de estar), o mesmo ocorrendo com um lajeado de história mais recente, também achado durante as escavações.

Conforme o relatório arqueológico, o muro “é idêntico aos que se encontram nos castros” (restos de construções circulares em pedra, feitas por um povo que habitou o lugar no século II a.C., antes da chegada dos romanos). “Contudo – prossegue − os estratos arqueológicos escavados, com os quais tem uma relação estratigráfica, só possuem materiais enquadráveis no Mundo Romano. Esse dado pode indiciar que essa estrutura, embora mais antiga, foi sendo aproveitada e reformulada durante o Mundo Romano. Todavia, as intervenções arqueológicas realizadas nas imediações da habitação (casa de no 19), nomeadamente no Antigo Aljube Eclesiástico (edificação na qual a Porto Vivo está prestes a fazer adaptações para instalar uma residência universitária), detectaram uma estrutura com características semelhantes. Aí, e ao que parece, foi possível conotá-la com níveis arqueológicos da Idade do Ferro.”

Interior do imóvel ainda em ruínas. Depois, a sala e cozinha, agora conjugadas. Os espaços têm vista para o Rio Douro

A Porto Vivo tem hoje no Morro da Sé como projetos-âncora, com recursos do Banco Europeu de Investimentos, também a reabilitação de imóveis para um hotel, um lar da terceira idade, realojamento das 27 famílias removidas do local para a realização das obras e 80 apartamentos que irá lançar no mercado de arrendamento social. “A crise econômica não afetou nossa capacidade de terminar as obras, porque o investimento estava previamente assegurado”, garante a administradora da entidade, a economista Ana Paula Delgado. “Para cada euro público investido no Centro Histórico, foram investidos outros 9 euros privados.”

Os proprietários privados se sentem estimulados a recuperar seus imóveis quando percebem que o poder público investe em reabilitação urbana. A casa vizinha à de Martins, por exemplo, está em fase final de obras e deverá servir de moradia ao proprietário, como informou a empreiteira Habitocubo. “Mas o fato é que diminui significativamente o número de projetos privados, por conta da crise econômica, e, no aspecto público, não tenho mais condições para lançar intervenções como essas no futuro próximo”, lamenta Ana Paula.

Caso esse processo sofra solução de continuidade haverá um retrocesso. O que se vê hoje no Porto é que a manutenção da identidade do centro histórico, assim como o investimento para reabilitá-lo e conscientizar sua população a zelar por ele, fortaleceu o turismo, que tem sido o motor da economia local nos últimos anos.

De 2004 a 2011, o número de turistas cresceu 26,75% no Porto. Outras razões, segundo a gerente de produtos da Porto Convention & Visitors Bureau, Maria João Nunes, seriam a maior difusão da cidade por ter sido Capital Europeia da Cultura, em 2001; a remodelação do Aeroporto Sá Carneiro, eleito o 3o melhor aeroporto da Europa nos últimos seis anos; os voos de baixo custo; as novas infraestruturas turísticas (hotéis, restaurantes e locais de diversão); e melhorias no espaço público.

Participar da aventura da reabilitação urbana de centros históricos, no entanto, requer determinação. “Os bancos exigem projeto de obra aprovado para conceder empréstimo para a compra de imóvel em ruínas, o que coloca o comprador na posição ingrata de ter de encomendar um projeto e pagar as licenças correspondentes antes mesmo de poder comprar o imóvel”, diz Martins. “No meu caso, entrei em acordo com a arquiteta Floret e o vendedor, o que permitiu levar o processo a bom termo. Mas, para além das circunstâncias e desafios, é um estímulo e uma realização pessoal e social fantástica poder contribuir para a revitalização do centro histórico do Porto.”


*As fotos desta reportagem foram produzidas para o escritório Adriana Floret Arquitectura


Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.