A história do cangaço – que atingiu o clímax na década de 1930 – é aquela que permanece na memória. Apesar da idade avançada dos entrevistados e do fato de que quem conviveu com o foragido costuma responder apenas o que você quer ouvir (por defesa ou precaução), a verdade “oficial” se dilui na tênue fronteira entre ficção e realidade. Mas esses personagens coadjuvantes têm muito a dizer. Eles relembram com facilidade como naquela época a região era dominada pelos “senhores feudais”, que controlavam a força policial e tinham poder de vida e morte sobre os camponeses que trabalhavam em suas terras. Daí o fascínio que ainda permanece sobre Virgulino Ferreira da Silva, essa figura lendária nascida no próprio agreste, que conseguiu aterrorizar aqueles “donos do poder”. “Conheceu Lampião? Não? Então não conhece nada.” A fala de Arlindo dos Santos, 89 anos, morador da Raso da Catarina, na Bahia, toca o centro do labirinto que envolve a vida do rei do cangaço. Arlindo foi um dos muitos coiteiros que ajudaram a esconder e a proteger Lampião (1898-1938).
A saga do maior bandido da história brasileira é um dos episódios sociais mais instigantes da América do Sul. O cangaço mobilizou todos os estados do Nordeste e está virando uma história de ficção coletiva, um recontar de fatos. Esse período da história se preserva na memória nacional pela força do imaginário popular. Foi no sertão que o cangaço fincou raízes, irrigado pela injustiça social, pelo nível da indigência moral dos políticos e dos “coronéis” da terra e sua existência parasitária. Lampião era fruto de sua cultura e de um ambiente propício às revoltas sociais. É essa situação de impunidade que favorece e libera a imaginação de certos homens. “Lampião era um fraco que virou um forte. Ele é um produto da falta de ética daqueles governantes”, sintetiza Ignácio Loiola Freitas, historiador e prefeito de Piranhas (AL). A ação dos cangaceiros foi odienta, mas socialmente defensável. “Hoje em dia, a vida só é boa para soldado e para bandido”, teria dito Lampião ao padre Emilio Ferreira, durante uma missa na Fazenda Engenho. O cangaço não foi banditismo. Foi profissão.
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A aura de misticismo que recobre Lampião e seu bando, com casos reais ou fantasiosos, faz o queixo cair. Crimes, estupros, castrações, mutilações, tiro ao alvo em caminhantes, degolas, seqüestros, surras e rostos de mulheres marcados a ferro, à moda do gado, eram praxe de muitos cangaceiros, o que desestrutura os mitos de bondade ou de “Robin Hood” que acompanham muitas das histórias. O certo também é que os principais cangaceiros, os de sanha brava, como Lampião, Corisco e Labareda, nasceram mansos e se tornaram cruéis. Lampião acerta as contas do pai injustamente assassinado. Labareda vinga a irmã mais nova ameaçada de rapto por um sargento. Na época, procurou a Justiça relatando o fato e foi aconselhado pelo juiz de direito da cidade a fazer o mesmo com a irmã do policial. Corisco, um dos mais violentos cangaceiros, era militar, apoiou uma revolta de tropa, foi preso e fugiu. Assumiram o papel do Estado: expropriaram, administraram justiça ao seu modo, punindo com pena de morte os adversários na paz e na guerra. Para os sertanejos não havia forma de escapar da camisa-de-força, pois os policiais também não eram “flor que se cheirasse”.
No relato de alguns, os cangaceiros foram “mariquinhas”, se comparados às hordas de policiais com suas práticas de tortura. Os camponeses também não foram unidos na adversidade, pois muitos coiteiros preferiram ajudar Lampião a invadir suas próprias vilas, onde um cardápio de maldades foi levado a cabo. Foi o que aconteceu em Canindé de São Francisco (SE), onde um cangaceiro demente chamado Zé Baiano marcou em brasa três mulheres inocentes.
“Filho, é soldado ou cangaceiro?” Pedro de Tecila, 97 anos, morador de Olho d’Água do Casado (AL), então com 20 anos, olhando pela fresta da janela e tremendo, respondeu para a mãe: “É Lampião!”. Pedro reviveu na entrevista aqueles instantes – com voz falha e angústia no peito -, seu primeiro contato com Lampião. Ao descrever o encontro, falta-lhe o ar. O terror continua presente mesmo depois de mais de 70 anos. “Chapéus de abas dobradas, todos a cavalo. Eram 13 homens e três mulheres, cabelos longos até os ombros, ouro para todo lado e fuzis enfeitados. Me faltou a fala ao tentar responder o cumprimento do capitão. Ele queria saber de quem era aquela fazenda e se tinha cavalos.” “Vá buscar e venha neste instante”, disse Lampião quando Pedro disse que tinha um cavalo. “Saí correndo e tropeçando, quando me lembrei da burra. E agora?” Para aqueles homens que assumiam o papel do Estado com suas próprias regras de justiça, a deslealdade e a mentira eram punidas com pena de morte, e Pedro sabia disso. “Burra manhosa que só o diabo. Demorei.” Ele percebeu. “Deixa a burra”, ordenou Lampião, “e nos acompanhe para ensinar o caminho. Ficamos amigos.”
Eles despertavam ao mesmo tempo repulsa e fascínio. Muitos jovens se alistaram nas hordas do cangaço arrebatados pelas histórias, pelas roupas em azul-escuro, pelos lenços bordados daqueles homens que se enfeitavam em demasia. Mais tarde, Pedro se tornaria um coiteiro de confiança do grupo. “O capitão conversava muito, recordo também que ele nunca sorria. Às vezes levantava acampamento perto daqui por até 15 dias. Certa vez, ao passar na Fazenda Aroeira, matou 40 vacas e ateou fogo na cerca, no curral e na sede. Ficou só o pó. Era represália ao dono que não tinha mandado o dinheiro que ele pediu. Numa outra ele recebeu um bilhete do fazendeiro que mandava só um dinheirinho porque não tinha conseguido mais. Lampião reúne o bando e fala grosso: ‘Esse homem tem respeito meu por ter mandado a carta’”, lembra Pedro. Ele narra seus contatos com o capitão seguindo uma cronologia baseada nos anos de estiagem. Conheceu Lampião logo depois da grande seca em 1932 e, sorrindo, conta a história do único dia em que o rei do cangaço teve medo. “Naquele tempo eu tinha um garrote bravio que não havia jeito. Para amansá-lo, amarrei uma lata das grandes de querosene cheia de mandacarus bem espinhosos no rabo do bicho para ele aprender. Quando apertei o nó, o garrote fugiu urrando e arrastando a lata em direção ao esconderijo de Lampião. No dia seguinte fui levar leite para o bando e encontrei Lampião com uma cara danada. ‘Que houve, capitão?’ ‘Pedro, ontem à noite o barulho e a zoada da besta-fera foram horríveis. Pensamos que íamos morrer todos.’ Sabendo qual era a besta-fera e conhecendo a fera que era Lampião, não contei nada”, diverte-se Pedro, e completa: “Ele foi bom pra mim”.
Antonia, 107 anos, primeira mulher do feroz cangaceiro Gato, abandonou as hordas depois que seu marido se amasiou com Inacinha. Reclamou com Lampião, mas a decisão ficou com Gato que, tempos depois, iria demonstrar todo o seu amor pela amante ao morrer em combate tentando resgatá-la da prisão na cidade de Piranhas, depois de ser ferida. Lampião tampouco intercedeu em favor de Lídia, mulher de Zé Baiano, quando ela o traiu com outro cangaceiro: cortou a cabeça do delator, mas entregou a mais bonita cangaceira à justiça do marido, que a matou ali mesmo, a golpes de porrete. Em outra ocasião, o capitão mandou matar o cangaceiro Sabiá, que havia estuprado a parente de um coiteiro. Sabino, lugar-tenente de Lampião, muito ferido em combate e após oito dias de sofrimento, pediu ao chefe que o matasse, mas ele não aceitou. A tarefa acabou sendo realizada pelo cangaceiro Mergulhão, que lhe deu o tiro de misericórdia.
Segundo o historiador Frederico Pernambucano de Mello, Lampião era pai e marido amoroso. “Deve-se a ele a introdução no cangaço do ofício religioso coletivo, das mulheres em caráter permanente, da logística dos equipamentos e suprimentos bélicos, da guerra psicológica e de muitas outras artimanhas necessárias à sobrevivência na caatinga.” Grande dançarino, o cangaceiro organizava com seus coiteiros ao menos dois bailes semanais. “O traje do cangaceiro tinha apuro ornamental. Cheio de cores vivas e harmoniosas nos lenços bordados, nos bornais e frisos das cartucheiras e nas perneiras”, diz Mello. Também usavam muito perfume e uma profusão de anéis. O chapéu em estilo napoleônico era coroado de moedas de ouro e prata. “Como entender as notáveis afetações estéticas desse traje e revelar a identidade de quem o usa senão como indicativo de orgulho quanto à forma de vida adotada?”, questiona o historiador.
“Vi o chapéu clarear.” Essa foi a descrição de Arlindo dos Santos ao deparar com Lampião pela primeira vez. Os testemunhos são unânimes quando se fala do modo de vestir, dos perfumes e dos bailes dos cangaceiros. Conta-se que, quando o bando chegava, a pergunta era: “Tem macaco na Várzea (em referência aos policiais)? Não! Então era uma festa só. A mulherada vinha toda. Quase furavam o chão de tanto dançar. Sanfoneiro tocando, uma beleza, música miudinha e valsa”, lembra Santos. O xaxado era uma dança muito difundida no bando de Lampião e eles a executavam batendo com a coronha dos rifles no chão marcando o ritmo da música. Arlindo prossegue: “Eles todos perfumados. Os frascos de perfume já eram uma beleza. Eles davam para as mulheres só os vazios”. Quando indagado sobre o que achava de Lampião, não hesita: “Era um bandido bom”.
Lampião não foi derrotado por Deus nem pelo tenente João Bezerra da Silva. Hoje, o único mistério que ainda permanece na história do cangaço é sobre sua morte. “Boi no Pasto” – o telegrama enviado pelo sargento Aniceto, de Piranhas, para o comandante Bezerra, após o coiteiro Antonio da Piçarra delatar os passos de Lampião – precipitou o fim do cangaço. Mesmo traído, por que Lampião, estrategista nato, teria escolhido a Grota do Angico, um buraco, para acampar durante 15 dias? Como mais de 50 cangaceiros foram pegos de surpresa por um grupo de aproximadamente 40 policiais que caminharam e rastejaram morro acima por quase duas horas? Como os cães e os vigias de Lampião não notaram nada? “Atracamos na margem do Rio São Francisco, vindos de Entremontes, às 4 horas,” relembra Elias Alencar, 90, vizinho do coiteiro Pedro de Tecila. “Às 6 horas começamos a subir a encosta e nos dividimos em três grupos. Um se perdeu e não participou da batalha. De repente, no meio de uma neblina enorme, começou o tiroteio.
A ordem de combate não tinha sido autorizada, mas o cangaceiro Amoroso foi fazer xixi e deu de cara com um volante. Entre fumaça e névoa, não se enxergava nada. Dei tiro a esmo durante uns 15 minutos. Pensei que estava ferido, pois sangrava muito na cabeça, mas eram estilhaços das pedras que voavam para todo lado e me acertaram. Quando o tiroteio cessou, Lampião e Maria Bonita já estavam mortos. Só vi as cabeças decepadas em Piranhas quando foram colocadas na escadaria da prefeitura local”, lembra Alencar. O resto do bando debandou. Alguns foram presos, a maioria se entregou. O cangaço terminou naquele dia às 8 horas. Anos depois, os cangaceiros voltaram à vida livre e nenhum retornou à marginalidade. O fim de Lampião tem efeito de presságio e de atualidade. Presságio de que tudo pode ocorrer novamente, pois nada mudou na região. Atualidade, porque, quando percorremos esses caminhos do cangaço, temos a impressão de que a morte de Lampião aconteceu na semana passada.
Ainda nas palavras do coiteiro Arlindo vislumbrei a melhor pegada de Lampião. “Capitão, o que devo dizer se a volante aparecer lhe procurando?” “Diga que passei por aqui, amando e querendo bem, pegue meu rastro.”
LAMPIÃO NO MUSEU | |
Vera Ferreira, jornalista e neta de Lampião, dedica-se hoje a coletar dados e objetos para o futuro Memorial do Cangaço. Ela não quer tomar partido se o avô era bom ou ruim. O importante, segundo ela, é revelar a verdade sobre aquelas décadas, as razões que levaram essa gente ao cangaço. “Muitas atrocidades cometidas em nome do meu avô são infundadas. Provas não faltam para esclarecer que, nas datas desses crimes, o bando de Lampião não estava lá”, atesta. “Gostaríamos que o Memorial fosse em Canindé de São Francisco, cidade sergipana perto da Grota do Angico onde, em 28 de julho de 1938, morreram Lampião, Maria Bonita e mais nove cangaceiros. O projeto arquitetônico já temos. Terá auditório, biblioteca, sala de exposições com grande acervo de roupas, fotografias, enfim, tudo sobre o cangaço. Estamos procurando patrocinadores”, explica Vera. |
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