Caminhando para o Kinoshita. Café americano da Fazenda Fortaleza na mão direita. Na outra, a metade de um pão multigrãos orgânico. De repente, uma mulher com uma capa, tipo saco de lixo preto nas costas e nos pés. Parecia uma batgirl das profundezas da dor. Ela pediu meu café. “Esse troço aí é amargo, né?” Como eu queria tomar, falei que sim. “Mas fica com esse multigrãos, ele vai nutrir sua alma.” Continuei: “Qual é o seu nome?”. Olhei dentro dos olhos dela. Novamente tentei: “Qual é o seu nome?”.
Percebi que ela sentiu o meu afeto. Pegou lentamente o pão divino da minha mão esquerda. Chegou a roçar suas mãos sujas e atrofiadas, sujando as minhas. “Por que você quer saber o meu nome?” Senti que o seu olhar mudou e os músculos faciais relaxaram. Senti que ali era ela íntegra em seu papel da vida real. “Qual é o seu nome? Não vou mais encher o seu saco.”
Estava louco pelo seu nome, não sabia o motivo. Acho que era verdadeira a sua dor. Novamente, a drástica mudança de energia, quando perguntei o seu mais valioso poema, que é o seu nome, e veio em forma de silêncio. Naquele click, senti que baixou outra alma, conectando-se à minha alma milenar. Queria levá-la para casa. Acordaria sem ela no dia seguinte, sem lenço e sem documento.
Gostaria que tivesse sido filmado. Parecia filme de Paolo Sorrentino. Mulher de cheiro e gênio forte… Poças d’água refletem a poluição em direção ao meu destino: Kinoshita. Paro no semáforo e vejo dois meninos de esquina com suas bolinhas coloridas. Um sem maquiagem (parecendo eu, com foco nas pessoas e não nas bolinhas) e o outro com a cara pintada (com foco nas bolinhas). Outro momento tocante no meu caminho. Devem ter a idade do meu filho. Sem lenço e sem documento.
Mais uma partitura no meu repertório da vida, piano e voz para quem quiser, caro leitor, tem a ver com ser. Canto e toco a minha dor.
Senhora e senhor: O Trenzinho do Caipira, música de Villa-Lobos e letra de Ferreira Gullar.
Lá vai o trem com menino (sinto que sou eu)
Lá vai a vida a rodar
Lá vai ciranda e destino
Cidade e noite a girar
Lá vai o trem sem destino
Pro dia novo encontrar
Correndo vai pela terra
Vai pela serra
Vai pelo mar
Cantando pela serra o luar
Correndo entre as estrelas a voar
No ar, no ar…
Parece que cheguei de trenzinho ao Kinoshita, de corpo e alma, com honestidade, transparência e competência. Sendo, tendo e parecendo o reflexo dos nossos pais e das nossas dores. Ainda bem que vem o Carnaval para alegrar a vida?
*Kappo Cuisine é o conceito que Tsuyoshi Murakami trouxe ao Brasil e tem como base a transparência, o cozinhar em frente ao cliente e o uso de alimentos sazonais. Murakami é sócio e chef do restaurante Kinoshita, em São Paulo, murakami@restaurantekinoshita.com.br
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