É preciso certo distanciamento para perceber a força de uma cena para a história. Hoje, três décadas depois de um momento-chave para a explosão do aparentemente despretensioso rock nacional, fica clara a relevância deste “movimento”, seja pela transformação musical que representou, seja pela capacidade que teve de dar voz a uma geração de jovens em um período político conturbado ou ainda pelo alcance que teve (e mantém) na cultura brasileira.
Em 1982, surgiram Titãs, Paralamas do Sucesso, Legião Urbana, Kid Abelha e Ultraje a Rigor, além de serem lançados os primeiros discos de Barão Vermelho (com Cazuza) e Blitz. Ganhavam espaço também bandas como Ira! e Camisa de Vênus. Tudo de uma só vez. Assim como a Bossa Nova (anos 1950), a Jovem Guarda ou a Tropicália (1960), os músicos dos anos 1980 instauraram uma efervescência criativa, que deixou profundas marcas na música nacional e no comportamento jovem.
Para eles, não se trata de comparar bossa nova com rock, mas entender a potência do que surgiu naquele momento. “Acho que a gente estava reescrevendo algo para os nossos contemporâneos com o mesmo vigor com que outros artistas fizeram em momentos anteriores”, diz o titã Paulo Miklos, 52 anos. João Barone, 50, baterista dos Paralamas do Sucesso, ressalta a abrangência alcançada por aquelas bandas, além da originalidade do som: “Estávamos atrás de coisa nova, que viesse com mais frescor do que a velha forma do rock, que já tinha sido bem explorada”. O que foi produzido naqueles primeiros anos marcou não só o período, mas é, ainda hoje, um dos sons mais tocados nas rádios. Basta pensar em faixas como Você Não Soube Me Amar (Blitz), Todo Amor que Houver Nessa Vida (Barão), Óculos (Paralamas), Inútil (Ultraje), Sonífera Ilha (Titãs), Será (Legião).
“A gente é um capítulo importante da MPB. Vejo bandas que beberam no nosso som, mas acho que são eles que podem dizer se isso é verdade”, diz Miklos. É o que confirma o cantor e compositor Tatá Aeroplano, 37. “Os anos 80 foram tão intensos para mim, que só depois fui me dar conta da Tropicália ou da Vanguarda Paulista. Os grupos da época trouxeram o rock autoral”, diz ele, ressaltando que surgiram ali muito mais compositores que na época da Jovem Guarda, quando eram mais comuns versões para músicas estrangeiras.
O guitarrista Tomaz Paoliello, 27, do Garotas Suecas, diz que grupos como Titãs e Paralamas são referência de como ser banda no Brasil. “Foram influências muito primitivas, ‘hormonais’. Desde moleques, curtimos e buscamos referências desses discos”, diz ele, citando álbuns como Selvagem? e Cabeça Dinossauro, ambos de 1986.
O ano da explosão
Vivendo intensamente os últimos anos da ditadura militar, durante um processo de abertura política “lenta e gradual”, grupos de jovens, principalmente nas grandes cidades do País, começaram a se reunir de modo despretensioso para fazer música. Todos na casa dos 20 anos, com novas referências e vontades – e em geral, sem formação musical formal –, se desligavam da mentalidade mais sectária dos anos 1960 e 70, polarizada entre um rock marginalizado e uma MPB dominante, mas sem deixar de se posicionar a seu próprio modo.
“A gente não tinha tanto aquela coisa de direita e esquerda, que havia no período dos anos de chumbo. Antes, era necessário que você tivesse uma posição clara. Foi uma longa luta”, diz Miklos. “Por não ter esse fardo, chegamos cruzando a linha sem pedir licença e sem tanto temor.” Barone lembra que, na primeira fita demo gravada pelos Paralamas, enviada à Rádio Fluminense em 1982, uma das quatro faixas foi censurada – assim como aconteceu com Bichos Escrotos, dos Titãs, em 1984. A composição de Herbert Vianna fazia referência ao movimento Solidariedade, surgido na Polônia em reação ao regime soviético.
Fruto do contexto, as letras não abandonavam a contestação político-social. Mas, mesmo quando esse era o foco, chegavam com conteúdo diferente do que se via nas décadas anteriores. “A gente questionava coisas mais básicas, como ‘A gente quer comida, diversão e arte’. De certa forma, voltamos ao que era primordial”, diz Miklos.
Mas os temas e sonoridades eram variados, inclusive pelo grande número de bandas, cada uma com suas especificidades. Chegavam com força referências do new wave, reggae, ska, funk, pop e das batidas eletrônicas, que entravam cada vez mais no País, favorecidas pelo processo de abertura. Novidades tecnológicas somavam-se ao quadro, com a vinda de sintetizadores e outros instrumentos musicais, amplificadores mais sofisticados e equipamentos de som que possibilitavam novas experimentações.
Dada a amplitude de referências – a diversidade sonora e a distribuição geográfica das bandas por diferentes cidades do País (principalmente São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília) –, é difícil chamar a cena daquele momento de “movimento”, no sentido de algo coeso e com discurso comum. Mas o fato de serem todos grupos, e não músicos solos como predominava, já instaurava um diálogo claro entre eles no sentido de troca e “rivalidade saudável”.
“Com a profissionalização, havia também certa ‘medição de pica’, mas tudo isso num grande cavalheirismo”, diz Barone rindo. “Tava todo mundo nesse bonde. A gente ia ver os shows dos Titãs, do Ira!, do Ultraje a Rigor, do Premeditando o Breque… E admirava, se inspirava.” Miklos conta história parecida: “Vimos os Paralamas pela primeira vez em Brasília e ficamos surpresos. O Kid e o Barão vimos no Rio, e também começamos a nos interessar. A gente estava se descobrindo uns aos outros”.
Como parte desse processo, os dois músicos ressaltam a importância do estouro da Blitz, em 1982, com Você Não Soube Me Amar. A música foi um marco no estabelecimento da forte relação entre as bandas e as grandes gravadoras e um start para muitos jovens, que largaram suas faculdades para se dedicar ao que realmente queriam como profissão. “As gravadoras começaram a ir atrás da molecada, a se tocar que tinha algo rolando”, diz Barone. Junto às possibilidades que isso representou para os grupos, surgiam também todas as relações problemáticas envolvidas naqueles vínculos comerciais.
“As gravadoras foram se guiando pelos resultados de sucesso, como no caso da Blitz. Claro, eles estavam de olho na possibilidade comercial, não em fomentar um movimento”, ressalta Miklos. Decorreram daí tanto os benefícios quanto as possíveis injustiças, como conta Barone: “Essa geração teve sorte ter tanta gente talentosa podendo se expor de maneira muito ampla. Mas os tempos eram difíceis também e muita gente boa ficou de fora. Esse é um mundo vil, nem sempre justo e, diferente de hoje, o rótulo de independente soava como um atestado de que aquele músico nunca iria fazer sucesso”.
De qualquer modo, algumas figuras nas gravadoras foram importantes, como explica Tatá Aeroplano, também DJ e pesquisador musical. “Havia pessoas fantásticas dentro das gravadoras, como André Midani, Pena Schmidt, Marco Mazzola, caras apaixonados por música acima de tudo. Eles trabalhavam com os grupos, a favor da liberdade das bandas e também dos artistas, que estouravam e vendiam muito, inclusive salvando financeiramente as corporações. Mas, no fim dos anos 1980, a coisa mudou, as gravadoras foram virando aglomerados de advogados e números, e a música, que é o elemento importante para a gente, ficou em outro plano.”
Referência e não reverência
Depois de 30 anos, sucessos, fracassos, separações, reconciliações, mortes e superações, além de várias mudanças nas propostas musicais, grande parte dos músicos revelados nos anos 1980 segue com carreiras relevantes no cenário musical. Os Titãs, após as saídas de Arnaldo Antunes, Nando Reis e Charles Gavin e a morte de Marcelo Fromer, continuam ativos – fizeram neste ano um grande show em comemoração dos 30 anos, reunindo os ex-membros. Os Paralamas superaram o baque do acidente que quase tirou a vida de Herbert Vianna, em 2001, e emplacaram novos CD’s e sucessos. O Barão Vermelho, sem Cazuza desde 1985, e o Kid Abelha também comemoram seus 30 anos com shows e novas gravações. Outras bandas, como Ira! e Legião Urbana, se separaram – a primeira por desentendimentos internos e a segunda após a morte de Renato Russo –, mas vários de seus integrantes continuam investindo na música, como os guitarristas Edgard Scandurra e Dado Villa-Lobos.
Quase todas as bandas estão celebrando três décadas de existência, mas os músicos se recusam a qualquer tipo de nostalgia. “Boa parcela da nossa geração não viveu apenas do sucesso que fez nos anos 1980. Não paramos de pesquisar e houve uma preocupação em não fazer o motocontínuo. Hoje, com o tempo decorrido, é natural que a gente faça referência aos anos 80, mas não reverência”, conclui Barone.
“A gente estava atrás de uma coisa nova, que viesse com mais frescor do que aquela velha forma do rock que já tinha sido bem explorada. (…) E a abertura (política) trouxe uma amplitude de novas informações. Começaram a chegar com mais força no Brasil o punk-rock, o reggae, o ska, a new wave…”
João Barone, 50, baterista dos Paralamas do Sucesso
“É difícil entender como tudo aconteceu, mas acho que era um momento em que a nossa geração estava se aglutinando, estávamos começando a experimentar juntos. A gente, sem dúvida, é um capítulo importante da MPB, que continua gerando frutos até hoje. (…) Cada geração vem colocar algo, e a gente veio com essa coisa da vida urbana, da eletricidade.”
Paulo Miklos, 52, vocalista dos Titãs
“Nasci no meio da década de 1970 e vivi intensa e malucamente a década de 1980. Os primeiros amores, o primeiro beijo, a primeira transa, o primeiro porre, tudo isso embalado pelo som dessas bandas. É uma influência adquirida por vivência. (…) Diferentemente da Jovem Guarda, a produção dos anos 80 foi muito mais autoral. Acho que a grande novidade foi essa, compositores fazendo música para jovens. Cazuza, Renato Russo, Edgar Scandurra, Arnaldo Antunes, Roger, Marcelo Nova, Lobão.”
Tatá Aeroplano, 37, cantor e compositor
“Os primeiros discos que comprei foram dos Titãs e dos Paralamas. Muito antes de ter capacidade para gostar de Jards Macalé ou do Itamar Assumpção, que exigem uma interpretação mais cerebral e foram para mim descobertas mais recentes. Discos como Cabeça Dinossauro ou Selvagem? proporcionaram esse desafio intelectual, mas também têm perigo, adrenalina e testosterona. São discos de rock.”
Tomaz Paoliello, 27, guitarrista do Garotas Suecas
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